Contemplar a vida além do horizonte parece ser um dos maiores desafios na existência humana. Mesmo assim, existem pessoas que conseguem lançar o olhar adiante do seu tempo e encontrar razões que pautam suas escolhas e determinam o verdadeiro caminho a seguir. Estas razões vão contra as vontades, superam a vaidade, provocam questionamentos e chegam a deixar saudades. São poucas as pessoas que compreendem, e estas poucas, ao interiorizarem a mensagem, conseguem deixar sua marca de modo singular na vida daqueles que a rodeiam. E conseguem fazer isso, certamente, por descobrirem logo cedo, que existe mais graça em dar do que em receber. Em servir do que em ser servido. Não se trata aqui de um preceito religioso, mas de uma virtude que supera toda e qualquer convenção humana.

Estas afirmações representam uma síntese da história de vida de Maria Domini Leopoldo Lelis Araújo - Mirian Lelis, que é a décima primeira, de 14 filhos do casal: Euristaco Lelis e Laurentina Leopoldo. Ela tem 80 anos, é viúva do ex – vereador José Baldoino de Araújo (Zequinha Baldoino), é presidente do Apostolado da Oração, secretária da Cáritas Diocesana e animadora do Projeto Amigos do Seminário. Embora esteja na melhor idade, Mirian Lelis conserva o mesmo entusiasmo da juventude quando se trata das duas paixões que deram sabor a sua existência: a experiência pastoral e a vida familiar.

Ao chegar em sua residência e tocar a campainha, logo ouvi a chave girando na fechadura da porta, e em seguida, surge dona Mirian Lelis, vestida em uma camiseta branca, estampada com a imagem do Sagrado Coração de Jesus, e uma saia a altura do joelho, com passos firmes, se dirige ao portão de entrada. Eram exatamente 13:45 da tarde. Suas primeiras palavras se referiram a pontualidade com o horário que havíamos combinado. Entramos, e sentamos ali mesmo na área de sua casa, em duas cadeiras de balanço. Entre o cantarolar dos pardais e o vai e vem de carros e motos, demos início à entrevista. Durante 50 minutos ela voltou no túnel do tempo, para resgatar alguns dos momentos que marcaram sua vida. Com a voz calma e convicta foi descrevendo cada um dos acontecimentos. Foram minutos de emoção, aprendizado e de uma certeza, as escolhas que fazemos são determinantes para nossa vida.

O COMEÇO

Aos seis anos, vendo sua irmã mais velha - Maria das Mercês, ministrando aula de catecismo na área de sua casa, para seus irmãos e algumas crianças da vizinhança, que já tinham atingido a idade de sete anos, e por isso, deveria fazer a Primeira Eucaristia, ela decidiu que também queria assistir as aulas. De imediato foi repreendida por sua irmã, afinal, não tinha a idade para fazer a Primeira Eucaristia. Mesmo assim, a pequena Mirian, continuou a assistir a aulas e aprendeu todas as orações que eram necessárias para ter o primeiro contato com Cristo.

Com o término dos encontros preparatórios, ela chegou pra mãe e disse que queria fazer a Primeira Eucaristia. A mãe alegou que ela não tinha idade, mas ela retrucou dizendo que já sabia das “rezas”. Então sua mãe decidiu falar com o padre. Ao ouvir o relato, o padre sugeriu que a levasse até ele para uma conversa. E assim aconteceu. Depois de uma longa conversa, com várias perguntas, o padre chamou sua mãe e disse: ‘ela esta preparada, e pode fazer sim, a Primeira Eucaristia’. Foi desta forma que aconteceu: “eu completei seis anos em junho e em novembro eu fiz a minha Primeira Comunhão”, afirma.

Depois desse momento, a pequena Mirian ingressou na Cruzada Eucarística Infantil, movimento que tinha como finalidade promover a comunhão frequente entre as crianças, onde ficou até a idade permitida, 12 anos. A partir daí, recebeu o convite do grupo de cantos de adultos para continuar na Igreja, atividade que ela realiza ainda hoje. Recordando a relação com os pais e seus irmãos durante a adolescência e juventude, ela afirma que: “eram orientados para serem uma família unida”. E explica que existia uma relação de muita cordialidade entre os irmãos. “Se agente tivesse no quarto, eles batiam na porta pra perguntar se podiam entrar. Era desse jeito! Aquela formalidade, uma espécie de respeito, orientado sempre pelos pais”.

Recordar os bons momentos da juventude parece ser uma característica comum entre as pessoas que atingem a melhor idade. Isto se justifica pelo vigor físico do jovem, algo que se perde com o passar dos anos. Para Mirian Lelis, apesar de ter vivido numa época em que as coisas eram muito limitadas, era possível sim, ter bons momentos. “Tínhamos boas amizades. saíamos para pequenos passeios. Claro, nossos pais precisavam saber pra onde íamos e com quem íamos. Normalmente, nosso passeio era na companhia de uma pessoal com mais idade, uma irmã, uma tia, enfim, uma pessoa de confiança”, explica.

Questionada sobre os costumes e modos juvenis de sua época, comparados aos contemporâneos, ela garante: “A diferença do nosso tempo pra hoje é como se tivesse virado todo mundo de cabeça pra baixo. É completamente diferente! Não tinha essa libertinagem”. E continua: “eu não aprendi a dançar porque meu pai nunca deixou. Mas eu não me arrependo disso. Também não achei que ele foi cruel comigo”, afirma. Nessa época, não muito distante, ter os pais como referência, na maioria das vezes, era ter a garantia de uma vida adulta equilibrada.

A saudade salta aos olhos em forma de lágrimas, quando ela relembra os bons momentos que teve com sua irmã Maria das Mercês, que além de ter sido sua catequista, foi quem lhe ensinou a nadar nas águas do Rio Guaribas. “Esse rio era uma maravilha pra gente tomar banho. Eu aprendi a nadar aí. Minha irmã pegava e amarrava duas cabaças debaixo dos meus braços, ai me jogava na água e descia nadando pra me esperar mais embaixo, foi dessa maneira que eu aprendi a nadar. Tudo isso pra mim é uma lembrança muito boa, que me deixa muita saudade”, garante.

TRABALHO

Paralelo às ações pastorais Mirian Lelis se dedicou aos estudos e teve também suas experiências profissionais. “Eu trabalhei a primeira vez, ainda muito jovem, na Livraria São Paulo do Sr. Lourenço Campos. Na ocasião, ele veio na casa do meu pai pedir pra eu trabalhar. Depois, quando terminei o ginásio, trabalhei uma temporada no escritório das Casas Pernambucanas, uma grande rede de lojas em todo Brasil, inclusive aqui. No mesmo período fui chamada para fazer um curso de contabilidade publica em Recife para trabalhar na prefeitura. O curso teve a duração de três meses. E desta forma, passei a trabalhar na prefeitura de Picos na área de contabilidade, onde fiquei muito tempo, até perto de me aposentar”, explica.

NAMORO

Por sua dedicação ao trabalho e as ações pastorais da Igreja, terminou prolongando a decisão de constituir uma família. “Eu tinha as minhas preferências e a minhas decisões, portanto, não ia entrar na primeira canoa que chegasse”. O fato, é que com a eleição de prefeito ganha por Barros Araújo, ele levou para trabalhar na prefeitura o seu primo Zequinha Baldoino. Embora, ele fosse vizinho da jovem Mirian, não existia nenhuma relação de proximidade ou mesmo amizade entre os dois. Mas, por trabalharem juntos, começou a pintar um clima, que evoluiu para um namoro. O que, com o tempo, viria a se tornar em casamento.

Só que não foi fácil para chegar o casamento. Logo nos primeiros contatos, ela percebeu que ele gostava de beber, o que de certa forma, era comum entre os rapazes da época. Mas, ela detestava bebida. E por isso, começou a evitá-lo. Ele não bebia durante o expediente, somente quando saia, mas era o suficiente para ela querer distância dele. E foi neste cenário que o jovem Zequinha, lançou a proposta de casamento. Diante da proposta, ela simplesmente disse que era melhor que fossem amigos. Ele quis saber a razão e ela explicou: “eu não quero me casar pra não ser como Deus diz: ‘até que a morte nos separe’, e você bebe e eu não me entendo muito bem com bebida. Então vamos ser amigos”.

A resposta dada por Mirian Lelis não contentou o coração de Zequinha, que dias depois fez uma nova investida. Diante da indiferença de sua amada, ele decidiu propor a ela, que tivesse mais um pouco de paciência, pois só iria beber até o dia 31 de dezembro daquele ano. Portanto, a partir do dia primeiro de janeiro, não colocaria nunca mais uma dose de bebida na boca. Era uma proposta ousada, mas que carregava, em seus contornos, várias suspeitas. Entre elas, a de provocar uma decisão a seu favor, a qualquer custo. No entanto, ela aceitou. Diante do combinado, se passaram mais de dois anos, o que ela denomina de “experiência”, com um propósito, saber realmente se ele estava sendo sincero. A partir daí, veio à decisão de contrair o Sacramento do Matrimonio.

CASAMENTO x FILHOS

A opção pelo casamento, mesmo aos 37 anos, também teve seus desafios. Sua família tinha algumas reservas com relação à promessa feita por Zequinha. “Diziam que na hora que a gente casasse, ele iria voltar a beber e eu não iria ser feliz”, relembra. Mesmo assim, Mirian Lelis não pensava em voltar atrás. Foi ai, que sua mãe, comprou a briga e disse o que ela precisava ouvir naquele momento: ‘sei que você não gosta de bebida. Mas coloco nas mãos de Deus. Faça o que achar conveniente’. Foram poucas palavras, que lhe trouxeram o alento necessário para seguir a diante de cabeça erguida. “Por causa desse clima, eu me casei da maneira mais simples possível. E graças a Deus, vivemos mais de 38 anos juntos, e ele nunca mais nem cheirou um copo com bebida”, afirma.

Logo depois do casamento, ela engravidou. E sem um motivo de certa forma, aparente, acabou perdendo a criança. A partir de então, ela não conseguiu mais engravidar. Diante do fato, ambos decidiram erguer o olhar para o horizonte, e colocar em prática a missão que o Senhor da vida lhes concedera. Ele continuou na política, onde exerceu mandato como vereador por 20 anos. Esta escolha, ela considera ser, o maior desafio, em todos os anos que viveram juntos. “nunca aceitei, mas também nunca demonstrei. Procurei desempenhar da melhor forma possível o meu papel de esposa. Fiz esse sacrifício”, revela. Por sua vez, Mirian Lelis retomou suas atividades dedicando-se cada vez mais as ações da Igreja. “respeitei a escolha dele, e ele respeitou a minha. Na verdade, ele nunca se opôs as minhas atividades”, garante.

DOENÇA X MORTE

Por ser uma esposa devotada ao marido, sentiu muito quando ele teve o primeiro problema grave de saúde, no ano de 1992, que resultou numa cirurgia de vesícula. Foi nesse ano, que ele encerrou a carreira política. Seu quadro de saúde se agravou novamente em setembro de 2011. Iniciou-se ali uma batalha pela vida. Foram quase seis meses no leito de um hospital, com pequenas melhoras nesse período. E ela, estava lá do seu lado. “ao tomar conhecimento de que possivelmente ele não superasse a doença, comecei a me preparar espiritualmente, com orações, pedindo discernimento e sabedoria para aceitar o que viria a acontecer. E eu consegui. Acompanhei todos os momentos, no hospital, no apartamento. Eu estava lá. Só não ficava no hospital quando ele entrava pra UTI. Neste caso, eu o visitava apenas, duas vezes por dia. E isso foi até o fim. Por isso, carrego dentro de mim o sentimento de dever cumprido”, declara.

Dona Mirian, recorda que em dezembro de 2011, seu esposo teve um melhora e por isso, o médico liberou para que ele ficasse uns dias no apartamento, lá mesmo em Teresina. Naquela oportunidade, ela recebeu uma ligação de Dom Plínio José, bispo da Diocese de Picos, que lhe fazia um convite para ser tesoureira da Cáritas Diocesana. Ela recusou de imediato. E explicou as razões da recusa. Por sua vez, Dom Plínio, informa que ela não precisa se preocupar, pois, só iria assumir a função quando Sr. Zequinha recebesse alta e retornassem pra Picos.

Observando a conversa e percebendo a resistência dela, ele acenou afirmativamente, que era pra dona Mirian aceitar a função. E assim, ela fez, aceitou o convite. Ao concluir a ligação, ele a chamou e disse: ‘olha Mirian, eu sei que você está sabendo, por que eu também sei, meus dias estão contados. Quando eu lhe conheci já foi dentro da igreja e fazendo esses trabalhos. Na minha falta, eu quero que você continue, por que vai lhe ajudar muito. Nós não temos filhos, você vai ficar naquela casa sozinha? Vá pra seu trabalho que vai ser mais fácil pra você’, relembra. Zequinha, como era carinhosamente, chamado por ela, faleceu em março de 2012.

Após a morte do esposo, ela retomou as atividades. E exalta como a maior conquista de sua trajetória de vida, a decisão de servir. Mirian Lelis se considera uma pessoa feliz e diz que não tem de que se queixar. “Pra idade que eu tenho, me considero com uma boa saúde. Nem remédio para pressão eu comecei tomar ainda, felizmente! Tenho uma vida equilibrada. Nunca fui rica, mas também nuca faltou o que comer. Trabalhei com o propósito de ter um final de vida sossegado, podendo comprar meus medicamentos, minha alimentação, ir ao médico, ter um plano de saúde. Então, não tenho de que me queixar!”, garante.

Para Mirian a Igreja Católica sempre foi um sustentáculo em sua vida. “Foi onde nasci, onde vivi até hoje e me sinto assim, muito segura dentro da minha religião”. Ela conclui suas palavras, exortando a juventude e as pessoas de boa vontade, a identificarem os verdadeiros propósitos de suas vidas. “mesmo com toda essa mudança da minha época pra cá, o jovem tem condição sim, de ser uma pessoa com experiências exitosa, sempre focada no trabalho. Claro, isso depende das motivações interiores de cada um. Se a pessoa tem um compromisso, acredita em Deus e pensa na vida eterna, ela consegue trilhar o caminho sem se perder”, garante dona Mirian Lelis.
Daniel Jorge
Enviado por Daniel Jorge em 12/09/2016
Reeditado em 20/12/2016
Código do texto: T5758071
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