O DURO OFÍCIO DE POETAR

“Bom dia querido amigo poeta. Tenho escrito alguns versos, que ganham forma com o tempo, e queria reuni-los em um livro. O Sr. teria alguma dica/orientação acerca de gráfica com valores acessíveis, haja vista que terei de arcar com todos os "encargos". Faltam alguns para o projeto que tenho, estou engatinhando, mas encontrando um agradável caminho no mundo das letras. Obrigado.”.

– E. R., de Pelotas/RS, via messenger, em 27Out2017.

JM: Conta comigo para ler e dar alguns pitacos marginais no caderninho de originais... Quando o livro estiver pronto, me avisa que marcaremos um encontro pra bebericarmos um cabernet sauvignon, de preferência, e saudaremos a vida e o Absoluto, este que nos permite a transfiguração da matéria da vida através do poema com Poesia, certo?

JM: Já estás na reserva da Bala Maré (BM) ou ainda curtes a vida castrense? Devo ir a Pelotas somente lá pelo mês de maio vindouro. Sim, vamos nos falando, e que não nos dispersemos. Parabéns pela novidade: saber-te escriba com vontade de publicar uma obra. Somente com o livro pronto, acertado o número de páginas e como queres a capa, tamanho das orelhas, gramatura do miolo e da cartolina de capa, plastificada ou não, uso de cores, etc., é que poderemos ver a questão da gráfica e os custos de edição, correto?

ER: Faltam dois anos para a aposentadoria. Espero ansioso pela chegada da reserva remunerada para poder me dedicar ao jornalismo e aos projetos de comunicação. Fraterno abraço. Prazer em falar com o amigo.

JM; Participa mais das interlocuções através de meu perfil no Facebook, para que estejamos mais perto e fluentes na Poética, a qual é caminho cheio de pedras quanto à Estética e o Ritmo. Porque Poesia é música aos ouvidos... Lê sempre, em voz alta, até dez vezes cada poema, pra ver se o ritmo está certo...

ER: Obrigado. Ganhei meu dia com esta orientação. Palavras de quem sabe é ama o que faz. Grato.

JM: Quando fizeres a leitura dos poemas, toda vez em que ocorrer uma espécie de “soluço” na emissão do som ou parecer enrolar-se a voz dentro da boca, é sinal de que há uma quebra de ritmo no poema. No entanto, isto não será perceptível nas primeiras vezes, pois terás que te acostumar ao sensor de ritmação, que serás tu mesmo já treinado para perceberes o lapso sonoro.

Consegue alguém que possa vir a ser o teu "termômetro", o poeta-ouvinte: atilado, perceptivo, para servir de receptor atento quanto ao andamento rítmico. Se ele for músico com bom ouvido, terás um ótimo aliado. Poesia é música, por isso os gregos não a escreviam, e, sim, cantavam-na em louvor aos deuses.

O ritmo e a utilização das figuras de linguagem, especialmente as metáforas (a subversão do sentido original das palavras) são os maiores cuidados que deverás observar na elaboração dos versos. Tenhas muita cautela com vocábulos polissilábicos, estes, em regra, quebram a ritmação e enfeiam o poema. Quando a ação experimental de poetar em voz alta ‘tranca’ na garganta, empaca na palavra ou no verso, é sinal de que deves fazer, além da "inspiração", também a “transpiração" da palavra, do verso ou do conjunto de versos no todo do poema. Estes dois momentos é que criam o poema esteticamente bem construído. Há momentos em que ele parece flutuar, e em outros ele é água entre as pedras, não anda ligeiro, lépido e faceiro, é apenas uma tartaruga... Enfim, o poema parece ter vida própria, nem sempre o consegues comandar.

Lembra-te claramente de que o poema não existe (ou não vive) enquanto está somente nos estritos domínios do poeta-autor. É matéria inanimada ainda, uma peça embrionária. Quem lhe dará sopro de vida são os olhos ou os ouvidos do receptor. Portanto, o poeta-leitor também é dono do poema que faz uso na leitura ou na declamação. Até porque ao poema declamado e/ou simplesmente recitado ou lido em voz alta, ao seu bom ou mau efeito estético deve ser acrescida a figura do intérprete, que se acrescerá à proposta original e autêntica do poema, portanto, muito diferente do poema escrito ou digitado ao monitor à hora da criação ou inventiva. Repito, não esqueças: o poema inexiste antes de ser cooptado pelo leitor. Antes do ato de leitura, o poema é matéria morta. Quem lhe dá vida é o poeta-leitor...

E mais ainda, quanto ao nascimento da peça poética e a sua chegada ao mundo dos fatos: o Ego não consegue escrever o poema travestido de Poesia, não faz o poema com os recursos ínsitos à Poesia, porque a peça poética, num primeiro momento de criação, é fruto do emocional do seu tutor, e esse exercício poético do sentir acaba impossível e/ou impedido de ocorrer, devido ao egoico comportamento, ao egocentrismo do criador despreparado e/ou pouco lido, que, por isso mesmo só quer ser visto como o autor da peça poética e vir a receber as costumeiras louvações por parte de terceiros também despreparados.

Aliás, em regra, o poeta-autor do lugar comum da vida não chega a ter consciência crítica para com o poema recém-criado, por falta de preparo pessoal para tratar de assuntos como a fenomenologia da Poética e os seus signos.

Usualmente, os jovens poetas quase sempre ficam erroneamente ciosos de que acabaram de fazer a sua última “obra prima”, ou seja, a melhor peça verbal de todo o seu acervo criacional... E logo saem a se comprazer e/ou se auto-elogiar, esquecendo-se de que o poema é o que está em voga, enquanto peça estética em Poesia, e não o seu registro autoral (que lhe poderá render algum dinheiro), a roupa que o seu tutor veste, o poder econômico de que ele está ornado no momento ou quaisquer outros elementos materiais. A obra de arte poética não compactua, ao menos na primeira flama que a joga no mundo dos fatos, com fatores ou juízos de apreciação pecuniária – o quanto vale a obra haurida de vocábulos bem urdidos, tecitura capaz de chamar a atenção, ritmo e beleza e vida autônoma, o Novo, enfim...

O que importa mesmo é a peça criada, aquela que, por seus dotes de intrínseca beleza, ritmo, linguagem constitutiva ornada de contemporaneidade formal, de genuína originalidade e imagética, verdade ou legitimidade, codificação verbal, transcendência ou a estranheza da peça estética que venha, por si só, a instigar o ato de leitura e a possessão que ela desperta no poeta-leitor, que, de pronto a toma como de seu domínio ou propriedade.

Bem, retornemos às nuanças da criação. O Ego somente consegue escrever em prosa, vale dizer, o registro prosaico em suas espécies de narrativa curta, média ou longa, por exemplo: o artigo, o pensamento, a crônica, o conto, o ensaio, a dramaturgia, a novela, o romance. No entanto, é sempre aconselhável que, no texto em Prosa, ocorram alguns laivos de poesia, para que a emissão do conjunto textual não fira os ouvidos, enfim, seja agradável ao dar o “time”, o andamento verbal sobre o conteúdo. Fico com Charles Baudelaire: “Sê sempre poeta, mesmo que em prosa; grande estilo, nada mais belo que o lugar comum...”.

O prosaico nasce do exercício do racional, ou seja, a razão o elabora, faz a urdidura do processo de autocensura que a lucidez racional impõe, por sua própria natureza intelectiva e analítica. Em regra, quando da criação da peça poética, o emocional é quem escreve os versos, inexiste, naquele momento, o exercício do racional, a pausa reflexiva assentada no racional e suas claves de contenção. Este processo vai ocorrer no segundo momento de criação, a “transpiração”, enfim, o ato de “lucidez enternecida” que vai dar ao esboço do poema a sua forma definitiva ou aquela que satisfaz o poeta-autor naquele primeiro momento intelectivo, e não mais somente a presença do ato inspirado...

Quem faz o poema com Poesia é o alter ego. Estes são os hóspedes indesejáveis que vivem dentro do poeta-autor, e nem sempre são pacíficos; em regra são inquietos, porque muito nervosos na descoberta das palavras em seu vestido de festa, que é a Poética. Falam à revelia de seu hospedeiro. Têm voz própria, como identificou Fernando Pessoa, no início do séc. XX e lhes deu a novel nomenclatura de “heterônimos”. Uns medonhos... Por ora é só.

Lembra-te de que sou apenas o provocador, o instigador que faz com que o criador libere o seu alter ego mais e mais, para conceder voz ao poema. Este é o meu triste ofício: o de brigar com a palavra e os signos da inventiva, do fingimento, da traição, da fantasia, da farsa e dos sonhos criados para tentar ser feliz utilizando a mesma “lucidez enternecida”, que pode causar a chamada “estranheza”, por ser peça única capaz de envolver a quem se entrega à Poética.

O POETAR é ofício para quem pretende ser um solitário pássaro. Com um dado a ressaltar. Normalmente é um pássaro triste que necessita reconstruir o ninho perdido. Extrair os ovos para a possível gestação dentro das escarpas do abismo...

– Do livro OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/17.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/6155235