DE LÁBIOS COLADOS

Eu me atrevo a dizer que o poema depende exclusivamente do receptor para que se possa conceituar como “rastilho que pode ser fogo”... Sem o polo receptor a peça-proposta é matéria sem vida. O poema é o feto-embrionário mínimo, matéria ainda sem o hausto vital, deitada no seu berço de inventivas: sortilégios, farsas, sonhos tidos, havidos, vividos e os desejos mudancistas. Até este momento de proposição da palavra metafórica em ebulição, ocorre a fundamental participação do poeta-autor e seus alter egos. Todavia, é o poeta-leitor que lhe dá vida, o sopro primevo. Traduz a voz soturna do Mistério – o único que efetivamente produz a Poética. E, então, numa espécie de magia, a palavra alumbra e é pejada de estranhezas ao se relatar ao mundo (novo) que se inaugura. Tudo segundo o patamar do exercício do sentir. Atua, neste momento, a raiz e o efeito emocional, tal como ocorrera na cabeça do seu inventor, no momento da criação da peça poética. Só que esta já não é mais apenas dos domínios do seu autor – é mais – porque acrescido de sua finalística e destinação: atingir e estabelecer contato com o ser humano, que o recepciona e o redimensiona em alcance e amplitude. Esta é a principal característica do bom poema: o UNIVERSO DO NOVO. Enfim, aquele dardo que pode atingir o alvo, e, por este atingimento pontual (ou nos entornos dele), ser capaz de transfigurar a matéria da vida, propondo um ESTADO DE POESIA que proporcione o imediato instante de estímulo à felicidade e ao bem-estar. Mas tudo isto serve à pessoalidade do universo de seu leitor. Todo qualquer poema nunca tem destino exclusivo, mesmo os dedicados a alguém, porque a Poesia não aceita domínio nem proprietários. É seta sem destinação individuada nem pré-determinada. Sofre de uma doença antiga chamada Amor e este espécime humano vive, em regra, sofrente de desejos de imediatas soluções. O poema é sempre um beijo de lábios colados. Nessas bocas, a língua só emite o que o Outro deseja ouvir. Um selo em que ressalta a palavra e o que ela diz...

– Do livro OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/17.

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