Assistir canais estrangeiros no Youtube: Pedantismo?

ASSISTIR CANAIS ESTRANGEIROS NO YOUTUBE: PEDANTISMO OU UMA ALTERNATIVA ÀS TERRAS INFÉRTEIS E/OU NÃO CULTIVADAS NO BRASIL?

Dentro de um mar de variedades, podemos nos afogar sem encontrar o que queremos.

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SINTA-SE EM CASA

É fato que, nos últimos anos, houve um crescimento exponencial de canais brasileiros no Youtube. Tanto em termos de quantidade quanto de qualidade técnica. Esta última, impulsionada pelas câmeras DSLR ou, simplificando, “câmeras profissionais”.

O ponto negativo, em minha opinião, é que cristalizou-se um padrão: o de uma pessoa falando diretamente para uma câmera, com móveis de seu quarto ao fundo, utilizando um estilo de edição com cortes secos.

Não me entenda mal, acho que cada um deve gravar da forma como bem entender, sobretudo levando em conta os recursos disponíveis. A seguir, ouso fazer uma crítica, ao passo em que também faço sugestões, aos youtubers que ganham vultosas (ou nem tão vultosas assim) quantias advindas de seus vídeos.

É muito comum, inclusive motivo de alegria, o fato de que muitos youtubers conseguem mudar de vida, conseguindo, até mesmo, comprar belas casas e apartamentos que trazem maior conforto para eles e seus familiares. Por outro lado, apesar dos ótimos equipamentos utilizados, como câmeras e microfones profissionais, é muito comum a permanência do velho cenário “caseiro”.

Tal cenário pode fazer parte da identidade visual do canal, não fazendo sentido alterar seu estilo. Há ainda o caso de canais mais intimistas, mais pessoais, que não demandam maior produção. Outros já dão ensejo à uma ambientação mais profissional, com “cara de estúdio mesmo”.

E esse “estúdio” pode até mesmo ser montado dentro de uma casa, sem grandes mistérios. A grosso modo, com uso de refletores e chroma key. O tecido deste último de 1,70m X 2,00m , por exemplo, pode ser comprado por módicos R$ 24,00 na data em que escrevo.

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ONDE ESTÁ O INDIVÍDUO?

Outra coisa que sinto falta: gravações externas ou em diferentes ambientes. As câmeras são relativamente pequenas, temos à disposição diversos tipos de tripé, mas o pessoal insiste em gravar enfurnado no quarto.

Por exemplo: gosto muito de literatura, volta e meia faço pesquisas de resenhas e discussões de algumas obras, mas é bem decepcionante ver sempre o mesmo ambiente, mesmo estilo de edição, mesmo estilo de resenha etc. Até o visual, jeito como as pessoas se vestem e os “acessórios” (como óculos de armação grande) parecem ser os mesmos. Quando assisto um vídeo sobre a mesma obra em canal diferente, fico com uma sensação de déjà-vu.

Novamente: cada um é livre para se expressar intelectualmente e visualmente como melhor lhe aprouver, mas a impressão que tenho é a de que estamos nos “auto-estereotipando”, perdendo nossa individualidade. Se todas essas pessoas realmente forem assim, tudo bem. Mas, caso sejam diferentes, por que não deixar aflorar mais suas peculiaridades ao invés de se enquadrar em um molde pré-definido?

Outra impressão que tenho: excesso de mais do mesmo. Seguindo com o exemplo dos canais de literatura, vejo um excesso de vídeos relacionados à lançamentos, deixando em segundo plano ou no ostracismo títulos que não são “do momento”.

Também não costumo encontrar canais dedicados à determinado gênero literário, de maneira mais profunda. Quando muito, existem vídeos avulsos dando dicas rápidas de uma lista de livros do gênero x.

A propósito, neste ponto, Fábio Fernandes vem tentando trazer algo neste sentido, com seu canal Terra Incógnita (a despeito da qualidade técnica e da narrativa que deixam a desejar, mas que podem ser resolvidos com equipamentos, configurações e aperfeiçoamento).

Há alguns dias, ouvi um episódio do Anticast, no qual falavam sobre a própria mídia podcast, tratando da discrepância entre a produção realizada no Brasil e nos EUA. Uma das principais dicas de um dos participantes, que trabalha na área, se referia justamente para que as pessoas criassem mais podcasts de temas específicos, pois, ao gravar apenas sobre temas mais gerais, seriam sufocadas pelos grandes podcasts famosos e já consolidados.

Usando de uma analogia, é como no caso do esporte no Brasil: há o império do futebol enquanto os demais esportes ficam numa espécie de limbo. Com isso, temos uma saturação de determinados conteúdos e um total abandono de outros em diversas mídias, em especial, no Youtube e congêneres.

Isso, de certa forma, faz muito sentido. É fato que existem podcasts dos quais temos uma afinidade maior com os participantes e conseguimos ouvi-los falar dos mais variados temas. Por outro lado, fazendo uma analogia, “não sou fiel à loja de calçados, mas à marca de tênis”.

Ou seja, costumo ouvir episódios com temas que me interessam, independentemente de quais podcasts sejam. Por esse motivo, costumo assinar o feed apenas de podcasts de temáticas mais específicas (como o SciFi Tech Talk, por exemplo).

Aqui, temos também um ponto delicado, que não me aprofundarei: há um perfil de pessoas que buscam mídias que tratam de temas que lhes interessam e outro perfil que terá seu interesse induzido por essas mídias (claro: também pode haver um perfil híbrido).

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MESMO CONTEÚDO, FORMA DIFERENTE

Lembro que a crítica que faço não se resume à questões temáticas, mas também à variedade de estilos narrativos e formato do programa (o mesmo assunto discutido de outra forma pode fazer toda diferença!).

O que isso acarreta? Fatalmente, temos uma enorme lacuna que acaba por ser preenchida por canais estrangeiros. É o caso, por exemplo, da temática de ficção científica (seja em livros, filmes, séries etc.). Cito muito tal gênero porque é um dos meus favoritos mas, certamente, existem lacunas para outros gostos.

Muitas vezes, percebo que livros de autores famosos do gênero, que foram lançados por aqui e com exemplares disponíveis para compra não possuem sequer uma resenha no Skoob ou Amazon. Considero isso ainda mais grave quando se trata de uma obra de autor brasileiro.

Esse, inclusive, é um dos motivos pelo qual me esforço para tentar fazer resenhas desses materiais, pois já aconteceu de me interessar em saber mais sobre determinada obra e não encontrar informações e impressões disponíveis. E se nenhum brasileiro faz, dificilmente veremos uma resenha estrangeira, salvo se a obra for traduzida para outra língua.

Graças aos algorítimos do Youtube, descobri um canal chamado HyperDrive. A princípio, gostei bastante. Assisti um vídeo sobre Hard Sci Fi (Ficção Científica Hard) e outro sobre filmes Cyberpunk.

Ao explorá-lo, vi as indicações de outros canais e, a partir delas, cheguei nestes outros três: Nerdwritter, Philosophy Tube e PBS Idea Channel. Este último me surpreendeu não só pelos temas abordados somados a uma bela edição visual e musical, mas também por comentar um livro que li este ano e do qual não encontrei material em português que o discutisse mais profundamente.

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CURTA. COMPARTILHE... PENSE

O que mais me surpreendeu foi como, em tão pouco tempo, descobri tantos canais interessantes. Isso mostra também a importância das citações e referências aos canais, blogs, podcasts etc. que tratam de assuntos similares ou que possuem um perfil de público-alvo semelhante.

Outro canal bem interessante, inclusive já citado aqui, é de Will Schoder, que traz ensaios em vídeo sobre filosofia, história e cultura com um toque de humor. Com apenas oito vídeos, seu canal traz a seguinte descrição: “I make videos on things I care about. Videos come out when they’re done. Usually a month” (“Faço vídeos sobre as coisas que eu me importo. Os vídeos saem quando estão prontos. Normalmente, um mês”).

A citação acima traz uma ideia que aprecio bastante: colocar a qualidade acima da quantidade. É muito comum que canais com alta periodicidade façam alguns (ou muitos) vídeos para “encher linguiça”, apenas para “cumprir tabela”, “bater o cartão”, pois se enquadram em um modelo de negócio que, para se manter relevante, precisa manter uma frequência bem intensa.

Acima de tudo, a maioria dos canais supracitados trouxeram algo muito importante: me fizeram parar para pensar. Fugindo do padrão “curtir, compartilhar e passar para o próximo”. Na verdade, a tendência é de querer assistir o mesmo vídeo mais de uma vez, para absorver melhor o conteúdo, ter um melhor entendimento, além de fomentar boas discussões nos comentários.

Outro detalhe que me chama a atenção é que, em alguns canais, costumam ter gravações externas ou em outros ambientes, dando uma dinâmica legal para a narrativa.

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DO YOU SPEAK ENGLISH?

Claro que fica a pergunta: mas e a barreira idiomática? Realmente, ela existe. Alguns canais, como o Vice, disponibilizam legendas em português em parte de seus vídeos. Outros, não chegam a tanto mas, ao menos, deixam as legendas em inglês, o que já ajuda.

Vale ressaltar que costuma ser muito mais fácil o entendimento nestes canais em relação a filmes e séries: a captação do áudio é bem clara e, em grande parte, os “apresentadores” costumam ter uma boa dicção e uma velocidade de fala moderada. Afinal, querem passar uma mensagem e querem ser entendidos sem dificuldades.

Você irá perceber também que é muito mais fácil entender quando o assunto é do seu interesse, pois você já conhece os termos e consegue completar as lacunas pelo contexto.

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TV ABERTA INVADINDO O YOUTUBE

O Youtube possui um botão chamado Em Alta, com desenho de uma chama. Seria, basicamente, aquilo que está “bombando” no momento. A depender da época em que você estiver lendo, podem haver alterações. Mas até para deixar um registro histórico, se você acessar a seção Em Alta na época de publicação deste texto, possivelmente, verá entre os primeiros resultados: alguns canais de Minecraft, vídeos de pegadinhas, desafios, alguma polêmica envolvendo brigas entre dois youtubers famosos, entre outros.

E até mesmo no campo dos vídeos exagerados ou com pitadas de besteirol, me surpreendi positivamente com o canal de Colin Furze. É um exemplo de canal com ações ousadas, mas com o diferencial de que toda a parafernália é construída pelo próprio Furze. Vale destacar também um canal de divulgação científica chamado Smarter Everyday.

Quer dizer que, no Brasil, tudo são trevas? Não existem canais bons? Nada disso! Existem ótimos canais que trazem diferentes abordagens e formatos. O grande problema é que são ofuscados pelos canais mais famosos, com milhões de inscritos/visualizações. Encontrá-los é um misto de acaso, indicações e também dos algorítimos do Youtube.

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O QUE FAZER?

Quando lemos os comentários, muitas pessoas elogiam a qualidade de alguns canais ao mesmo tempo em que lamentam o fato de não serem conhecidos, de não possuírem grande número de inscritos. Além da dificuldade de encontrá-los, ainda há uma grande escassez para determinados conteúdos e, neste ponto, canais de países como Inglaterra, Estados Unidos e Canadá se mostram como alternativa a despeito da barreira linguística.

Cabe fazer um parêntese sobre a questão da divulgação e propaganda. Dificilmente um canal agradará todos os públicos. Logo, não é muito efetivo apenas ficar compartilhando a esmo e insistindo para que todos o assistam. O ideal é fazer uma ponte entre o ele e seu público em potencial, seu nicho.

O que fazer para mudar ou, pelo menos, melhorar este quadro? Para os produtores de conteúdo, acredito que a dica seja a inovação. Explorar temas mais específicos ou tratar temas batidos com uma abordagem diferenciada: se a maioria dos vídeos que falam sobre o tema x são frenéticos e cheios de cortes secos, que tal um ritmo mais lento, filmagens com duas câmeras ou com ângulos diferentes?

Vise o nicho. Ao invés de tentar atingir um público mais amplo, observar as lacunas deixadas pelos grandes canais e focar em um público alvo diferenciado. Não raro, a despeito de pequeno, tal público costuma ser fiel e, além de contribuir com visualizações, costuma até mesmo contribuir financeiramente, fomentando a produção de conteúdo.

Também existe um grupo de pessoas que, ainda que não produza diretamente tais conteúdos, pode contribuir em sua divulgação. Acho que me encaixo nesta categoria, estou fazendo minha parte deixando indicações de canais brasileiros [http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/6073398] e também com as reflexões e sugestões deste ensaio [um nome chique para este “textão”]. Se você teve a paciência de ler na íntegra e achou algo válido, tente levar adiante essa discussão nos seus círculos de amigos e contatos para estimular o debate.

Voltando a questão abordada no início, acredito que assistir canais estrangeiros no Youtube não seja, necessariamente, pedantismo. Confesso que esta impressão surgiu ao ver alguns perfis de escritores que sigo no twitter, que pareciam apenas interagir com conteúdos de mídia internacional, escrevendo apenas em inglês.

Minha percepção era a de que, tais autores e produtores de conteúdo, ignoravam os brasileiros ou faziam uma espécie de filtro elitista, tendo como fator excludente o domínio ou não da língua inglesa. Mas é algo muito relativo, o uso do inglês pode servir também como um fator agregador, para facilitar o contato com seguidores de todo o mundo.

Temos também o fator discutido aqui, que é a ausência de canais sobre determinados temas. Cabe ressaltar também a limitação de recursos de ordem material e cognitiva: em países como Estados Unidos, já existe uma tradição na produção destes conteúdos, cursos, tutoriais e uma vasta literatura disponível em sua língua nativa.

Saindo da questão binária, nada impede o consumo de material estrangeiro concomitantemente ao nacional. Aliás, isso pode até mesmo criar um saudável intercâmbio de informações. Para citar um exemplo na esfera musical, basta lembrar da troca de cartas e fitas K7 que existia nos anos 1980 entre bandas punks do Brasil e da Finlândia e como isso as influenciaram mutuamente.

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NOSSO LEGADO

O leitor que chegou até aqui deve estar se perguntando: por qual motivo escrevi esse texto? Primeiramente, acredito que essa produção de conteúdo de qualidade no Brasil não deva se restringir somente no que tange ao Youtube e congêneres. Acredito também em um desenvolvimento para fortalecer nossa indústria cultural propriamente dita. Livros, filmes, séries de TV etc.

Muitos jovens tinham aversão à literatura brasileira, por conta de serem forçados a ler textos mais difíceis e de temáticas que, geralmente, não atrai os que estão na mocidade. Escritores como André Vianco e Eduardo Spohr vieram provar que é possível ter best-sellers, com a literatura fantástica nacional.

No Cinema, um sintoma semelhante: a indústria nacional não estava produzindo aquilo que o grande público desejava. Fernando Meirelles e José Padilha ajudaram a reverter essa mentalidade. Hoje, não é mais incomum a produção no Brasil de filmes de ação e até mesmo filmes de Ficção Científica, como O Homem do Futuro, de Cláudio Torres.

Nas séries de TV, podemos ver o mesmo. Se antes éramos relegados apenas às novelas (ou séries nos mesmos moldes), passamos a ver tentativas no caminho oposto, como 9mm: São Paulo, pelo canal Fox e, mais recentemente, a série 3%, da Netflix.

É claro que ainda não chegamos em um nível de excelência, mas tudo começa com o primeiro passo, tentativas, acertos, erros e aperfeiçoamento.

A maior motivação para escrever tudo isso é o estímulo à cultura e torná-la algo mais perene. Trocar a quantidade pela qualidade. Daqui a cinco ou dez anos, o que encontraremos quando olharmos para trás? Pense nisso.

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Link para o post original, com todos os links ao longo do texto: https://medium.com/@7seconds_/assistir-canais-estrangeiros-no-youtube-76aa6054245a