O MITO DO HEROI SACRIFICADO
 
Os cultos solares
 
Como todos os maçons sabem, a sua Arte, embora encontre seus fundamentos organizacionais entre os pedreiros medievais, mais propriamente na estrutura das corporações dos chamados pedreiros-livres (chamados masons pelos ingleses e maçons pelos franceses), têm, na sua filosofia e princípios fundamentais, um pé firmemente fincado na estrutura do antigo reino de Israel. Tanto isso é verdade que encontraremos no catecismo dos graus superiores da Maçonaria uma verdadeira profusão de temas e ensinamentos inspirados no Velho Testamento. Isso é interessante, porquanto, sendo a Maçonaria ocidental uma instituição tipicamente cristã, é bastante estranho que sejam, primordialmente, os temas da Biblia hebraica a inspirar a liturgia desenvolvida nos graus superiores da Maçonaria e não a teologia dos Evangelhos cristãos. Essa é, sem dúvida, uma das razões que fazem católicos e evangélicos, especialmente aqueles menos informados, desconfiarem da Maçonaria e levantarem contra os maçons as mais estúpidas e ridículas acusações.
A verdade é a que a doutrina maçônica ̶  se assim podemos chamar os preceitos cultuados pelos maçons ̶   estão muito mais fundamentados em fontes hebraicas do que cristãs. E no que toca á influência cristã que aparece em alguns dos graus (especialmente o 18- O Cavaleiro da Rosa-Cruz), ela tem um parentesco mais próximo com o gnosticismo do que com o cristianismo ortodoxo, propriamente dito.  
Como sabemos, o cristianismo ortodoxo, seguido tanto pelos católicos quanto pelos evangélicos, é uma criação do apóstolo Paulo de Tarso. Não fosse ele a doutrina pregada por Jesus jamais teria saído dos estreitos limites do território de Israel e não teria se tornado uma crença mundial. E foi o apóstolo Paulo que transformou Jesus, o Messias cristão, (um herói tipicamente da cultura israelita) no Cristo grego, um arquétipo de caráter universal, cultuado por praticamente todos os povos antigos.
A tradição de um herói sacrificado, no entanto, que dá sua vida pela salvação do povo, não é específica da cultura de Israel, mas sim um tema existente em praticamente todas as culturas antigas. É, na verdade, uma inspiração derivada das antigas religiões solares, na qual o sol, sendo aquele que permite a existência da vida, por efeito da energia que ele prodigaliza, é o “herói que morre todas as noites”, e ressuscita pela manhã, energizando a terra para que ela produza os seus frutos.
Daí os povos antigos desenvolverem o culto ao sol, fazendo dessa crença uma verdadeira religião, criando ritos de fertilização como os praticados no Egito, com os Mistérios de Ísis e os praticados pelos gregos, com os Mistérios de Elêusis, o persas com os Mistérios de Mitra, os hindus com os Mistérios de Indra, etc.      

O mito do herói sacrificado
 
     Todo maçom que tenha sido elevado ao mestrado na Arte Real já fez a sua marcha ritual em volta do esquife do Mestre Hiram Abiff. A alegoria da morte de Hiram é uma clara alusão ao mito do sacrificado. Ele está conectado, de um lado ao simbolismo da ressurreição e de outro lado ao mito solar. Pois nas antigas religiões solares, como vimos, o sol, princípio da vida, morria todos os dias para ressuscitar no dia seguinte, após passar uma noite em meio ás trevas.
     Assim como toda a teatralização dos Antigos Mistérios, fosse na Grécia ou no Egito, ou em qualquer outra civilização que praticasse esses festivais, mais do que uma simples homenagem aos protetores da natureza, esses rituais simbolizavam a jornada do espírito humano em busca da Luz que lhe daria a ressurreição. É nesse sentido que a marcha dos Irmãos em volta do esquife de Hiram, sempre no sentido do Ocidente para o Oriente, nada mais é que uma imitação desse antigo ritual, que espelha a ansiedade do nosso inconsciente em encontrar o seu “herói” sacrificado (ou seja, o sol), para nele realizar a sua ressurreição. Pois o sol, em todas essas religiões, era o doador da vida. Ele fertilizava a terra e fazia renascer a semente morta. Destarte, toda a mística desses antigos rituais tinha essa finalidade: o encontro com a luz que lhe proporcionaria a capacidade de ressurreição.
    Essa é a razão da estranha marcha praticada pelos maçons em volta do corpo assassinado do arquiteto Hiram Abbif, sempre no sentido do ocidente para o oriente, pois o que ali se simboliza é a marcha do espírito humano em busca da luz (a luz solar) que nasce no oriente e caminha para o ocidente. Desse forma, o espírito humano, fazendo o caminho inverso, há de encontrar o seu “herói sacrificado” e com ele realizar a união, obtendo a sua “iluminação.” Esse é, pois, o sentido simbólico da cerimônia de elevação do Irmão ao grau de mestre.
 

O sacrifício da completação
 
Conectado com esse simbolismo, os antigos povos, em suas tradições iniciáticas relacionadas com grandes obras arquitetônicas, desenvolveram o chamado “sacrifício da completação”. Esse sacrifício consistia em oferecer ao deus a quem era dedicado o edifício um sacrifício de sangue, que podia ser o holocausto dos inimigos aprisionados em guerra ou pessoas escolhidas entre próprio povo. Muitas vezes essa escolha recaia sobre mulheres virgens (as vestais) ou jovens guerreiros, realizadores de grandes feitos na guerra. Acreditava-se que assim os deuses patronos dos poderes da terra se agradariam daquele povo, prodigalizando-lhes fartura de colheitas e proteção contra os inimigos.[1]
Esse tema remonta á antigas lendas, cultivadas pelos povos do Levante, segundo o qual nenhuma grande empreitada poderia obter bom resultado se não fosse abençoada pelos deuses. E essa benção era sempre obtida através de um sacrifício de sangue. Esse costume era praticado inclusive pelos israelitas, como mostra o texto bíblico ao informar que Salomão, ao terminar a construção do Templo de Jerusalém “sacrificou rebanho e gado, que de tão numeroso, nem se podia contar nem numerar.”[2]
Dessa forma, na Maçonaria, o Drama de Hiram tem uma dupla finalidade iniciática: de um lado presta sua referência ao culto solar, sendo Hiram, nessa mística, o próprio sol que é homenageado; de outro lado, cultua o herói sacrificado, pois é nele que se consuma a obra maçônica. A Maçonaria, como se sabe, é uma sociedade de "pedreiros", que visa construir uma sociedade justa e perfeita.
Nessa mística podemos incluir o simbolismo que está no centro do próprio mistério que informa a crença cristã. Pois Jesus Cristo, o sacrificado do credo cristão, também é imolado para que a obra de redenção da humanidade seja realizada. A Maçonaria, como vimos, trabalha especificamente com esse simbolismo no grau dezoito, o chamado Cavaleiro da Rosa-Cruz.
Concluindo, podemos dizer que a Maçonaria é uma sociedade teosófica e humanista que no seu propósito místico está centrada na estrutura do antigo reino de Israel. Como se sabe, a doutrina que fundamenta a formação e a existência do povo israelense, como se comprova na sua própria saga histórica, é a de que Israel, como povo e nação, é uma espécie de “maquete da humanidade autêntica”, ou seja, o povo modelo que Deus escolheu para que a humanidade nele se espelhasse. E em sua face mística, o povo de Israel seria a estratégia pela qual Deus reuniria “os cacos do vaso sagrado (o universo)” quebrado pela ação impensada de Adão e Eva. Ou seja, Israel seria o próprio “Messias” realizando a Tikun olam.[3]
É nesse sentido que a Maçonaria, adotando a estrutura e o simbolismo do Velho Testamento, em sua ritualística procura desenvolver o mesmo sentido que Israel dá á sua doutrina. Por isso podemos dizer que a Maçonaria é a Cabala do Ocidente.

                                                        
 
 
[1] Veja-se o relato bíblico em Juízes: 11;30,31, na qual o juiz Jefté sacrifica a própria filha em razão de um voto feito á Jeová.
[2] Reis I- 8:5- Na imagem, gravura mostrando os maçons em volta do esquife do Mestre Hiram. Fonte: “Morals and Dogma”, de Albert Pike - Kessinger Publishing Co. 1992.
[3] O termo Tikun olam (תיקון עולם) significa "reparar o mundo". É um termo cabalístico que sustenta a crença de que Deus escolheu o povo de Israel para reparar o caos causado pelo pecado de Adão. Vide nesse sentido a obra de Gershon Scholen- A Cabala e Seu Simbolismo, Ed. Perspectiva, São Paulo, 2015. É nesse sentido, tmbém, que a Maçonaria adotou o lema "Ordo ab Chao", que significa Ordem no Caos, pois sendo a Maçonaria uma espécie de sucedâneo do reino de  Israel, essa seria a sua missão no mundo: realizar a ordem no caos, construíndo uma sociedade justa e perfeita.