O ABSOLUTO

“O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.

O que há é pouca gente para dar por isso”.

Álvaro de Campos.

A busca do segredo íntimo da natureza me parece presente nas artes, ciências e letras. Brecht nos disse que "Pensar é um dos maiores prazeres do homem". O outro é criar, e há um terceiro, que é buscar, e um quarto, que é se espantar. Finda a capacidade de se espantar com o mundo, e de extrair desse espanto o prazer da busca, o homem deixa de ser em parte humano, e se assemelha mais a uma coisa que está aí, jogada, meramente existindo, como coisa no mundo, não um ser, Dasein, mas uma coisa-aí. Mas o ser-aí é um gênio inventivo capaz pensar e criar. A religiosidade também é fonte de prazer e elevação do espírito - não necessariamente, ou não somente, por meio das práticas de culto tradicionais, (A institucionalização da experiência religiosa pode, até mesmo, criar sérias barreiras ao espírito) mas, sobretudo, no que possui de sutil, de sublime, e que muitas vezes está oculto à percepção mais vulgar. É que nas entrelinhas da experiência religiosa mais básica, nos diz Freud em Totem e Tabu, se escondem segredos potentes e impulsos poderosos. Além destes, encontro lá outros segredos: formas que são religiosas pelo que tem de simetria, unidade, ordem e beleza. Quando chegamos a esse núcleo profundo, mesmo que a tipificação religiosa não seja aparente, mesmo que ao nécio tudo pareça invulgarmente não religioso, mesmo que o nome de nenhum deus seja invocado, mesmo que nenhuma liturgia fixa se derrame em ato, será o número a expressão do sagrado, a simetria, a ordem, a unidade e a beleza, as manifestações do sublime e da graça. A tal núcleo, Heisenberg chama de "ordem central", para onde podemos voar pela beleza de uma teoria científica, pelo encanto simétrico de uma verdade matemática, mas, mais facilmente, por meio de uma cantata de Bach. A arte, desta forma, despida de qualquer afetação religiosa institucional, ou assumindo a estética de uma tradição de culto, seja como for, é, ela própria, uma forma de religiosidade, bem como a ciência, tanto quanto a literatura, pois, se não há salmo e se não há missa nas letras de Dostoiévski ou Tolstói, se não há liturgia e sacrifício nas telas de Michelangelo, se não voam os anjos e os serafins, retumbam os deuses e despertam os Titãs e se contorcem os demônios ao som de Mozart, se não há revelação em um solo de Stan Getz ou Iluminação nas letras de Cartola, então já não sei onde mais pode haver missa e salmo, e por meio de quais encantos e forças da natureza podem viver tais seres celestiais. E se as cartas de Rilke ou os poemas de Pessoa, se os Josés de Drummond ou os apaixonados de Garcia Marquez não nos podem conduzir ao paraíso, ou ao menos nos possibilitar atravessar o infeno em segurança, como Virgílio possibilitou a Dante em busca de Beatriz, então já não sei o que é caminho, e desaprendi a caminhar. E se a beleza de uma equação, ou simplesmente da ideia informada que ela contém, da cosmovisão que ela encerra, não nos delicia a mente proporcionando imenso prazer, elevando nosso espírito, então já não sei porque deveríamos, nós, seres condenados ao pensamento e a reflexão e inoculados no mundo da ação, conhecer a natureza. Penso, então, nas palavras dos nabis, penso em Maurice Denis:

"Há dois tipos de pintura religiosa. Uma sentimental -se posso falar assim- que restitui a beleza das atitudes de oração(...) Outra que se inspira menos na vida e que, para realizar o absoluto, retoma o segredo íntimo da natureza, o número (...)"

"Das relações matemáticas entre linhas e cores surge uma beleza sobrenatural que deforma levemente um pouco de sofrimento humano que aí transparece como que parece acrescentar um discreto toque de vida e oração à expressão da harmonia divina".

A matemática é, em todo caso, a ponte, ou uma delas, que liga as ciências e as artes. Ela se encontra na estrutura harmônica e no ritmo na música, está no Jazz e na Vênus de Milo, no jogo de luz e sombra e na composição cromática na pintura, na engenharia lírica das construções estróficas na poesia, no encadeamento lógico semântico das peças literárias, nas formas geométricas, nas curvas, na escultura, na arquitetura que é esse vértice onde ciência e poesia se encontram. Ah... os incaultos julgam muito erradamente quando pensam a matemática como coisa fria, rigorosa, sem vida. É, na verdade, a matemática, coisa muito viva e vibrante e é por isso que anima as artes tanto quanto as ciências. E quando se acrescenta às finas formas assim criadas o sentimento belo, temos nós a escada pronta para subir aos céus.