Ninguém é Deus, muito menos eu - 13/abril/2011



        Antes de tudo, devo dizer da dificuldade antecipada para a classificação deste texto que vou escrever: crônica, esboço de ensaio, prosa poética?  Prosa “poética”, por exemplo, é algo muito complicado de conceituar, já que se encontra na zona de intersecção da crônica e da poesia e, demasiadas vezes, no que tange às fronteiras dela, prosa poética, com a crônica, tais fronteiras se mostram bastante indistintas, enfim... na hora da publicação do texto no Recanto, escolho em que categoria colocá-lo.
    Após este preâmbulo, comecemos a escrever o texto propriamente dito.

    Nossa Espécie costuma, muitas vezes, produzir seres com Complexo de Deus (permiti, psicanalistas, o uso do neologismo que talvez nem o seja, visto não haver nunca nada de novo sob o Sol, logo, provavelmente, serem tais termos “Complexo de Deus” algo já sob vossa alçada e domínio). Retomando o que dizia, parte de tais seres com Complexo de Deus tem se destacado ao longo da História, na esfera pública, tendo, sua ação, resultados quase sempre trágicos; a grande maioria, porém, de seres com tal Complexo o exerce, o tem exercido, muitas vezes sem consciência de possui-lo, na que chamamos esfera privada.
    Dos seres com Complexo de Deus a agirem na esfera pública ao longo da História abstenho-me de falar, pela abrangência do tema, pelo excesso de “personagens”, pela minha falta de competência e real conhecimento para abordá-la, à manifestação do Complexo em questão na sua ação deletéria no que se refere ao destino de grandes comunidades, mesmo de povos inteiros. Ainda que a me acompanhar também a falta de competência teórico-técnica para a abordagem do referido Complexo na esfera privada é aí, a esta esfera privada que vou me ater, por meio de dois exemplos, para mim emblemáticos, o primeiro no âmbito da família, o segundo, depoimento meu, pessoal, no território da chamada “relação amorosa.”
    Penso que muitas mães e muitos pais padecem, claramente, disto a que denomino Complexo de Deus, no caso, padecem de um Complexo Distorcido de Deus. Distorcido, porque aquele a quem consideramos o verdadeiro Deus que tudo sabe, que tudo pode, que está em todas as partes e que é eterno, esse verdadeiro Deus ofertou à nossa Espécie, entre outros dons, o dom do livre-arbítrio, o dom da escolha, da escolha até para negá-lo, negar a Sua existência, dele, de Deus.
    A maioria dos pais manifesta, como principal sintoma do Complexo, a ação de superproteger seus filhos (este mal, agravado em demasia na contemporaneidade, vem sendo transmitido de geração em geração, como se fora algo de origem genética, transmitido, principalmente, por intermédio das mães, quase sempre inconscientes das consequências de tal prática; quase que exclusivamente pelas mães pelo menos enquanto ainda não havia ocorrido, para algumas camadas da população, a plena emancipação feminina, porque agora, por múltiplas, complexas e contraditórias razões, a superproteção dos filhos vem se tornando prática recorrente também por parte dos homens, dos pais.
    Pais e mães com Complexo de Deus, pois, agindo a partir do sentimento de onipotência, de onipresença (muito como compensação psicológica pela ausência física por excesso de trabalho e por outras causas), de uma espécie de “certeza de eternidade”, tudo isso para prover os filhos de tudo, de todos os bens, principalmente os de natureza material; paradoxalmente, ao suprirem o que eles julgam serem as maiores necessidades dos filhos, acabam por se submeter à tirania dos desejos deles, dos filhos e, assim, agem como deuses tortos, como deuses às avessas, não dando aos seus descendentes noções de limites, nem capacidade de autonomia e de livre-arbítrio nem princípios de respeito aos direitos dos outros, muito menos qualquer compromisso com tais direitos. Assim, sem que o queiram, sem que em momento algum o tenham pretendido, por seu desmesurado amor muito sem direção, tornam seus “rebentos” seres fracos, inermes, desorientados (sem Oriente) e desnorteados (sem Norte), seres exclusivamente centrados em suas necessidades egoístas, filhos para uma Sociedade que, sofrendo ela mesma de Grande Complexo de Deus, colabora e aperfeiçoa, de modo extraordinário, o trabalho dos pais – pobres deles – na maioria esmagadora dos casos absolutamente inocentes de sua responsabilidade na constituição de criaturas  despreparadas para se tornarem pessoas felizes, equilibradas e bons cidadãos.
    Tenho a mais absoluta certeza de que, talvez todos os que eventualmente estejam lendo este texto, a esta altura dirão: “Você não acha que está “demonizando” a ação dos pais, transformando-os em bodes expiatórios de uma situação cujas causas vão muito além das atitudes no lar, estando, na verdade, no Sistema Social com todos os seus desvios, desvios que se manifestam das relações na Escola às relações em família, passando pela malha das relações sociais influenciadas pela TV e pelos demais meios de comunicação (...)?” Só me cabe dizer que concordo plenamente com tal argumentação, apenas acrescentando que, a meu ver, o fato da Sociedade ser a grande responsável pelos desvios de conduta do corpo social, nós, os seres que compõem este corpo social, pais, professores... temos que adquirir consciência do real poder deste Big Brother personalizado nas várias faces do  Sistema sócio-político-econômico-cultural, para não nos tornarmos seus agentes, agentes inocentes a serviço de uma grande dissolução, dissolução também de faces múltiplas. De todo modo, permanece a questão, dialética, questão a permanecer em pauta desde a constituição dos primeiros sistemas de pensamento e dos primeiros grupos sociais: Quem determina quem? O social, o indivíduo; o indivíduo, o social; ou ambos se realimentam, um ao outro, ao longo da História, dos tempos, dos mundos? Em outras palavras, também como diziam nossos avós:  O que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?


    Como sou teórica de coisa nenhuma e adoro percursos alineares além de, parece-me, a mim, serem as classificações, às vezes, demasiado precárias (lembram-se do que escrevi inicialmente sobre a dificuldade de se estabelecer fronteiras claras entre prosa poética e crônica?), permitam-me, neste momento, uma guinada de 180 graus no que se refere, tanto à linguagem quanto ao ângulo pelo qual vim delineando a abordagem do tema “Complexo de Deus”, passando, a partir deste momento, para abordagem dele sob ponto de vista muito particular: o tema “Complexo de Deus” sob ângulo relacionado a atitudes e gestos e palavras minhas na vida amorosa pessoal, no caso, na tentativa de “desmontar”, talvez um pouco à feição psicanalítica, o significado de trecho que escrevi ontem em texto publicado também ontem no Recanto das Letras, com o nome MORRER DE AMOR, cujo trecho referido transcreverei a seguir:

    (......................................................................................................)
    “Vi morrerem, uma a uma, as esperanças no olhar do meu Amado, por isso vivo, por isso permaneço. Para a tentativa, talvez totalmente vã, de ressuscitá-las, uma por uma, as suas mortas esperanças, de ressuscitar ao menos uma, eu que em mim não mais as tenho, ou a quase nenhuma.”
    (...........................................................................................................)

    Percebam, amigos, o termo usado por este ser que presentemente lhes fala, esta pessoa que o trecho transcrito de MORRER DE AMOR demonstra, de modo cabal, sofrer, também ela, do tal Complexo de Deus, que já havia imputado aos pais e às mães, bem como à Sociedade no seu todo, além de àqueles personagens da História cujas ações seu texto apenas mencionou sem nelas se deter. Detenham-se no termo “ressuscitar”, pensem em suas conotações. Não é índice de alguém a se imaginar, a se idealizar como o “Messias” da vida de outro alguém, em suma, alguém com um claríssimo Complexo de Deus? Afinal, quem sou eu para pretender-me com o poder de ressuscitar o quem quer que seja, mesmo, talvez e principalmente em um ser amado, muitíssimo amado? Ainda que fosse mãe deste ser, eu não poderia fazê-lo, como não pôde (perdoem-me a comparação) a Virgem evitar o Destino de seu Filho, restando-lhe o direito de ficar-Lhe ao lado, de segui-Lo com o seu amor. Vocês se dão conta do tamanho da minha pretensão?
    Urge reconhecer que não tenho poder algum sobre a consciência nem sobre as escolhas de quem quer que seja, por mais amado que este ser me seja. Urge também suportar a dor dessa impotência, equivalente ao sentimento da impotência de ver um filho a sofrer dor de proporções inimagináveis que ela, mãe, só pode mitigar com a presença do seu amor e da sua empatia profunda com tal dor no filho amado.
    Urge reconhecer, também, que não tenho poder efetivo sobre as escolhas para a minha própria vida, limitação que partilho com boa parte dos seres deste mundo. Para citar exemplo muito claro: moro com mãe idosa, com excessivas limitações de locomoção corporal e, para dizê-lo de forma delicada, não conto com apoios da família. Deixo o registro apenas para dizer que, se fosse escolher de acordo com a minha mais funda necessidade pessoal, eu moraria sozinha, teria – coisa impossível – espaço próprio, à minha semelhança e feição.
    Penso que, para vivermos de acordo com a nossa condição humana particular, a partir das verdades ancoradas nos princípios da nossa ética e do nosso amor e dos nossos compromissos com os seres, amados ou “apenas” companheiros de jornada nesta Terra, e de acordo com os compromissos éticos também no que se refere aos nossos adversários, temos que ter noção dos nossos limites, da nossa pequenez e também de grandeza conquistada a duríssimas penas, desmontando-nos toda e qualquer ilusão de “ser Deus” que nos leve a achar que temos o direito de interferir na vontade e nas opções de outro ser, quando essa vontade e estas opções estejam na contramão do que nossa visão “de fora” pense como sendo as melhores para este ser, até pela nossa com-paixão, até pelo nosso amor.
    Ficar junto, ficar perto, deixar o ser amado saber que basta estender a mão e encontra a nossa mão a postos, estendida. Tentar não oprimi-lo, ao amado, com a “onipotência”, com a “onipresença” do nosso amor. Tentar, tentar, tentar, que estar na busca disto é cair e cair e cair bem mais que as três vezes com que Pedro negou a Cristo.
    Olhar o amado nos seus abismos e aceitá-los sem submergir neles nem tampouco tentar transmutá-los, aos abismos no amado, à força, que qualquer transmutação de abismos só tem valor e realidade quando corresponde à escolha e à ação do possuidor, em si mesmo, de tais abismos. Esperar, aspirar a que o amado faça o mesmo conosco, com os nossos próprios abismos, para que ambos nos sintamos realmente amados na aceitação mútua da  luz e da sombra de cada um.
    Ajudar, se o ser amado nos pedir ajuda; respeitar sua opção, se ele preferir a ajuda de outrem, ou nenhuma. Amar, simplesmente amar, sem nenhum Complexo de Messias, de Deus. Simplesmente amar e isso não é nada simples, é caminho só de desafios, de quedas, de muitas quedas, de dores de vária natureza, de alegrias também – às vezes,  por mais paradoxal que pareça, o amor precisa se vestir com as vestes da separação quando, por exemplo, a luta a travar se torne superior às forças de que dispomos para ajudar o amado sem que, simultaneamente, nos percamos a nós mesmos (isto seria mero sacrifício inútil, com função destruidora para a vida do amado-amador, tanto quanto para a vida do amador-amado).

•    Afinal, amigos: isto é crônica, prosa poética, ensaio, mensagem religiosa, homenagem, o quê isto é? Embora impuro e fora dos cânones, tenho a tendência de classificá-lo, a este texto, como ensaio, ou como tentativa de sê-lo; com esta classificação o publicarei.

Beijo a todos e minha gratidão por sua paciência como leitores.
Zuleika dos Reis, no dia 13 de abril de 2011.