Etimologia da Língua Portuguesa nº62

Etimologia da Língua Portuguesa por Deonísio da Silva nº62.

Milagre teve origem no latim miraculum, coisa digna de mirare, admirar. Já reputação, que significa estima, fama, veio do latim reputatio, designando de início cálculo, conta e depois meditação, consideração.

Eixo: do latim axis, vindo do grego áxon, designando linha imaginária que vai de um ponto geográfico a outro. A palavra eixo apareceu muito na II Guerra Mundial para indicar a aliança entre Alemanha, Itália e Japão, que constituiriam as forças do Eixo, contra as quais lutavam as nações aliadas, lideradas pela União Soviética, pelos Estados Unidos, pela Inglaterra e pela França. Como se sabe o Eixo foi vencido. No começo do governo de George Walker Bush surgiu a expressão “ eixo do mal”, criação de seu conselheiro e autor de seus discursos, o jornalista Jeff Shesol, que já escrevera discursos também para o presidente Bill Clinton. Nada de milagroso, já que intelectuais desse tipo de táxis, que trabalham para qualquer passageiro , desde que paguem a corrida, vale dizer, os discursos que escreve. Mas paira uma dúvida sobre o verdadeiro criador da expressão. Pode ter sido o escritor David Frum, o único judeu da equipe de conselheiros do presidente, de maioria evangélica. Tal versão surgiu de mensagem eletrônica trocada pela esposa de Frum e captada pela revista on-line Slate. O eixo do mal constituía-se originalmente por Iraque e Irã, que seriam detentores de armas de destruição em massa. O Iraque, por razões óbvias: os Estados Unidos venderam as armas para Saddam Hussein enfrentar o Irã. E este porque a Rússia constrói uma usina nuclear para os iranianos, os quais garantiram que é para fins pacíficos. Mais tarde a Coréia do Norte se tornou o terceiro integrante do “eixo do mal” .

Milagre: do latim miraculum, coisa digna de mirare, admirar. No século XIII eram pronunciadas miraclo e miraglo. Comparações com o francês miracle,o italiano miracolo e o espanhol milagro podem esclarecer o percurso da modificação da pronúncia. Encontramos ainda no português medieval as formas milagre e milagro. A troca de “r” por “l”, e vice-versa, não é rara em nossa língua. O português e o espanhol consolidaram a troca do “r” pelo “l” na segunda sílaba e do “l’ pelo “r” na seguinte. E em vez de miraculum, com quatro sílabas, adotaram ambas as palavras de três sílabas: milagro, no espanhol e milagre no português. O francês fez o mesmo com miracle. Das neolatinas, só o italiano conservou as quatro sílabas: miracolo. Muito usada nos sermões, a palavra se consolidou primeiramente nos púlpitos, nos quais os curas destacavam, para conversão dos gentios ou manutenção de sua fé,os feitos extraordinários, dignos de admiração por serem de impossível execução sem ajuda divina. Assim, a Bíblia põe em evidência os milagres de Jesus. O Evangelho de São João começa com dois: o das bodas de Caná, em que a água é transformada em vinho, e o da cura de um menino, gravemente enfermo, filho de um alto funcionário real, que morava em Cafarnaum, então cidade mais importante da Galiléia judaica.

Reputação: reputatione, declinação de reputatio, designando originalmente cálculo, conta e depois meditação, consideração, consolidando enfim o significado de estima, fama. Ganhou sobretudo na linguagem jornalística, um conceito neutro, podendo a pessoa ter boa ou má reputação, como ocorre com a fama. O escritor alemão Heinrich Boll (1917 – 1985) criou pequena obra-prima em que a personagem central é uma jovem bonita e sexualmente recatada, cuja reputação é destruída pelo que se convencionou chamar de imprensa marron. Ela se chama Katharina Blum, trabalha como diarista fazendo serviços domésticos , cuidando também de bufês em festas de recepções.Com os rendimentos, adquire apartamento e carro, vivendo como mulher independente. Num carnaval, apaixona-se por um jovem cuja reputação ignora, mas que depois descobre ser procurado pela polícia. A imprensa devassa a vida da moça e ela mata a tiros o jornalista, que não teve o menor pudor de expor a intimidade de uma jovem honesta e trabalhadora para aumentar as vendas do jornal. O romance tem o título de Honra Perdida de Katharina Blum. Lançado originalmente na Alemanha, em 1974, dois anos depois sua tradução brasileira obteve grande receptividade, talvez pela influência de idéias que já então buscavam mudar as mentalidades que viam na morte da mulher que dá um passo errado numa relação amorosa a única forma de redenção aos olhos da opinião pública. Sem ser piegas, Boll conquista para sua personagem a simpatia do leitor, levando-o não a aprovar o ato desesperado que ela praticou, mas a entender os motivos que o geraram. Diante de um policial desconcertado e perplexo, a jovem se apresenta e informa que matou o autor das reportagens sensacionalistas que destruíram sua reputação. As tramas ficam mais complexas porque o fotógrafo, que trabalhou nas mesmas reportagens, também foi assassinado por outra mulher. Em lugar da vítima tradicionalmente indefesa, Boll apresenta-nos uma mulher que sabe se defender quando atacada.

Deonísio da Silva, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e escritor, é autor de Os Guerreiros do Campo e A Vida Íntima das Palavras (Siciliano), entre outros 27 livros. E-mail: deonisio@terra.com.br

Revista Caras

2002.

Doutor Deonísio da Silva
Enviado por zelia prímola em 07/01/2017
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