DIÁLOGO POÉTICO, CRÔNICO, DAS ÁGUAS DO RIO (CAPIBARIBE, SEUS IRMÃOS, SEUS PRIMOS DISTANTES - A RUÍNA)

DIÁLOGO POÉTICO, CRÔNICO, DAS ÁGUAS DO RIO (CAPIBARIBE, SEUS IRMÃOS, SEUS PRIMOS DISTANTES - A RUÍNA)

Marlos Guedes, 14.11.2017

Sou um rio desgraçado

Atormentado pelas mãos humanas

Não sinto meu próprio cheiro

Só lembranças das águas doces, cristalinas

- Em meus veios escorre excrementos humanos

- Escorre seus esgotos de cada instante!

Meu ventre é torto, fedido de fedor humano

Cheio de óvulos caídos, infecundos!

E os caralhos boiam em meu dorso, peixes mortos!

Decomposições em minha pele, pele que resiste

Pele que se arrasta, em longa viagem, até a boca do mar

Que me come em minhas sobras, nas sobras dos humanos. Sal que cicatrizam...

Homens sem alma, cães sem plumas

Meu leito não é mais o leito dos pescadores, nem leito de peixes

Nem leito dos poetas, nem leito dos amantes

Na minha gordura feito de minha boa lama

- ( Que se mistura com a lama dos homens, lixos, metais pesados....)

Ainda sobrevivem as ostras a tentarem, em vão, filtrar tanta desgraça...

Ainda sobrevivem caranguejos feitos de lama poluída

E o homem quando come o caranguejo ou bebe da ostra

- Come e bebe sua própria lama!

Mas quando eu estiver no leito da morte

Na agonia das veias que entopem

- menos água e mais sangue das carnificinas -

Lembrarei de muitos poetas que cantaram minha alegria e minha dor

Bem que um anjo torto, doentio feito eu, poderia me salvar!

Cansei, não acredito mais nos humanos, só nos bêbados e nos loucos!

Uma bandeira branca erguida na voz do poeta

" .... do lado de lá ficava o cais da rua da aurora, onde se ia pescar escondido...."

Meu caro, sobraram alguns peixes doentes, que mal conseguem respirar, mal conseguem nadar...

- Deixa eles quietos, evitas teu anzol, evitas tua rede, evitas mais essa dor, basta-lhes a dor de minhas próprias desgraças e uma morte do doente no meu leito de feridas!

Gosto, também de Poética, lembra-me libertação

Lembra-me do lirismo difícil e pungente dos bêbados, como dizes!

Tu rompestes com as grades da gaiola, com as redes que aprisionam!

Eu? Não!

Sobra-me a prisão das lamas fedidas dos bem comportados, acomodados... tementes a deuses e as ordens superiores, humanas.... a ordem do caos, dos livros de ponto expedientes ...

Antes, eu falava de um anjo caído, torto, que viveu a angústia da dor em seus versos íntimos, em suas dores íntimas..

Quanto mais sujo de lama humana, mais espelho sou!

E , em meu manto, todas as porcarias , dos cães sem plumas, se desenham em meu corpo

- da superfície até o fosso de mim mesmo

E o anjo dizia:

"... Acostuma-te a lama que te espera..."

Não tem como, anjo torto!

Que budismo moderno é esse?

"... Já o verme, este operário das ruínas que o sangue podre das carnificinas come! E a vida em geral declara guerra...."

Os vermes não me incomodam, meu caro!

Só o amoníaco que exala da alma humana

Os vermes limpam meu corpo, naturalmente!

Mas, eles precisam de oxigênio e já tenho tão pouco.

E até os operários das ruínas viram lama

Com seus tecidos corroídos pelo amoníaco da ciência humana!

E tudo morre no meu leito

E meus olhos se fecham junto com os olhos humanos!