Segredo de UTI

 
Mesmo que o enfermo esteja consciente e em condições de sair do leito, numa UTI de hospital isto é proibido. Desta forma, tudo que tem que ser feito, de um jeito ou de outro, é ali mesmo. Não se pode ir ao banheiro, por exemplo.
 
No meu caso, acredito que teria, depois de passadas algumas horas, plenas condições de me levantar, embora com restrições e cuidados. Contudo isto implicaria em me afastar dos aparelhos. Eu estava conectado ao oxigênio e à unidade de monitoramento da pulsação, batimentos cardíacos e pressão arterial. Caso saísse e a crise retornasse, correria risco de morte ou agravamento do quadro, por falta de socorro imediato. Assim sendo, só me restava aguentar firme.
 
A questão líquida não me preocupava, porque o escoamento acontecia permanentemente através de uma sonda peniana. Bastava ficar de olho para que ela não entupisse - como de fato aconteceu uma vez e requereu uma lavagem para remoção dos coágulos. Quanto aos sólidos, eu confiava na promessa do médico plantonista que havia me recebido, de me liberar no dia seguinte de manhã. Desta forma, se o meu relógio biológico não resolvesse me pregar uma peça, não teria que recorrer a uma vexatória comadre.
 
O problema é que após horas deitado, fui experimentando gradativamente o acúmulo dos gases pressionando o abdômen. Suportei heroicamente enquanto pude, temendo o vexame de um atrevido e sonoro pum.
 
Porém lá pelas tantas da noite, senti que não seria mais possível segurar. Percebi que o paciente ao meu lado gemia. Contei mentalmente os segundos entre um gemido e outro, pensando em soltar os meus presos juntamente com os vagidos do vizinho. Desta forma, o som dele cobriria o meu e ninguém notaria. Apenas uma cortina nos separava.
 
O plano foi maravilhoso no tocante à sincronização dos eventos. No exato momento em que ele gemeu, soltei a turma. O que eu não esperava é que os meus detentos, ao sair, provocariam um ruído muitos decibéis acima dos gemidos do homem. Ele parou de gemer. Pensei matei o velho.
 
O alívio que senti em seguida superou largamente a vergonha do vexame, e acho que nem vermelho fiquei. Pensei estar livre de novos incômodos até a manhã seguinte, pelo menos.
 
Todavia, logo depois os presos não libertos – eu achava que todos tinham escapado - iniciaram uma crescente rebelião. Parecia que a barriga ia estourar. A UTI em silêncio, somente um bip aqui e ali. Eu me contorcendo, tentando driblar os malfeitores e pensando numa estratégia de liberá-los aos poucos, sem chamar atenção de ninguém. Quem sabe uma sábia negociação resolvesse e acalmasse os ânimos dos revoltosos, mas o sinal que eles davam era de que não estavam dispostos a ceder. Diálogo, portanto, impossível.
 
Embora eu não pudesse ver claramente, defronte à minha baia, junto à cortina que nos separava, os enfermeiros usufruíam dos raros momentos de descanso, sem, entretanto, relaxar.
 
Naquele momento, havia um enfermeiro e uma enfermeira de plantão. A pressão no meu ventre ia aumentando minuto a minuto, tornando cada vez mais difícil manter os gases presos e razoavelmente comportados. O inevitável aconteceu. O levante estourou. Saíram todos os prisioneiros de uma única vez. O estrondo produzido superou o peido anterior, ainda mais audível em função do silêncio quase sepulcral do ambiente naquele instante.
 
Vi o casal de enfermeiros levantar-se e passar correndo diante da abertura da baia. Só faltou gritarem: explosão! Terremoto! Salvem os doentes!


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N. do A. – Na ilustração, Alexandre o Grande e o Médico Felipe de Henryk Hektor Siemiradzki (Rússia, 1843 – Polônia, 1902).

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 13/10/2017
Reeditado em 15/02/2022
Código do texto: T6141831
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