Como os homens são

Nenhum outro artista da cultura brasileira tenha assumido tanto para si o feminino quanto Chico Buarque. Expressando em várias canções um eu-poético feminino, ele compreende a extensão do ser mulher, amplamente. Além do que, falar de Chico lembra-me sempre o comentário de um ex-namorado, que carinhosamente chamava-me, naquele tempo Alice adormecia, "olhos de Chico Buarque". Mas, isso é outra história...

Nas poesias nas quais Chico assume um eu feminino, o masculino salta inevitavelmente aos nossos corações muitas vezes. Recupero da memória a História de Lili Braun. Numa interpretação notável e apaixonante, Maria Gadú dá voz à poesia narrativa de Chico. A minha atenção se volta para o homem do poema, um sujeito sedutor, doce e ao mesmo tempo másculo. Apaixona-se por Lili, conquista-a. Era o homem dos sonhos dela. Assim como a Lili do poema Quadrilha, de Drummond, a Lili de Chico se deixou tornar esposa. Tornou-se infeliz, a Lili de Chico. Tornara-se outro, o homem.

A maioria das mulheres com as quais convivo, entre amigas, colegas e parentes, as que são casadas, não me parecem felizes. Perguntadas sobre as felicidades, são uníssonas em responder injúrias. Ou não responder nada, o que diz muito. Por que muitos homens se tornam outros, quando numa relação? Na companhia dos homens, construí-me como pessoa. Por isso me recuso a acreditar que eles têm má índole. Ao contrário, sempre me reservaram experiências humanas. De proteção. De gentilezas. De fascínio.

Quando estava no primeiro ano de mestrado, fazia uma disciplina na sexta-feira à noite. No horário de intervalo, um cigarro. Sim, eu nutro o péssimo hábito do tabagismo, ainda. Em frente ao prédio do Instituto de Ciências Sociais e Letras há uma pizzaria, de arquitetura mista, entre o moderno, com perfis de aço expostos, e o rústico, com paredes de tijolinhos de barro à mostra. Um local com um certo requinte, percebia-se pelos cristais dispostos sobre as mesas. Via-se pelas janelas. Do outro lado da rua, em frente.

Paulistas adoram pizzarias, é impressão que se tem. Vivia cheia naquelas sextas-feiras, nas de inverno, nas de verão. Nessas noites, também, o serviço de limpeza urbana passava, recolhendo resignadamente os restos da vida cotidiana de todos nós, moradores e não moradores da cidade. Numa dessas noites, a pizzaria parecia estar fechada para clientes comuns. Convidados especiais povoavam-lhe as mesas. Mulheres elegantemente vestidas. O caminhão movimentava-se e parava ao longo da rua, qual as noivas de antes, ao som da marcha nupcial. Mas o som que se principiou a ouvir foi um festivo parabéns para você. Alguém comemorava o aniversário na pizzaria. No que se aproxima, a recolher sacos e mais sacos de lixos, o lixeiro, como um pajem à frente da noiva. Cansado, provavelmente, àquela hora, quase dez da noite. Quem sabe triste, pelos sonhos que sua condição social fizera adormecer, até então. Mas toma-se da mesma alegria que os convidados vistosos do/a aniversariante da pizzaria. Acompanha-os nas palmas e no canto de desejo de felicidades. Enquanto os brindes eram feitos lá dentro, o lixeiro cantava e recolhia o lixo. Um homem certamente bom, o lixeiro. Parabenizava quem não conhecia, alegrava-se com o aniversário de alguém que não o convidara para a festa, de alguém que possivelmente nunca o convidaria, de alguém que torceria o nariz para o uniforme verde e sujo que trajava. Mas ele não se preocupava em pensar nisso, para ele era alguém a ser felicitado por estar vivo. E a vida é para ser comemorada, acredita ele, seja na pizzaria, seja em cima do caminhão do lixo, que seguia seu ritual, seu rumo. Ninguém dentro da pizzaria provavelmente se deu conta de que o lixeiro, enquanto fazia seu trabalho, fazia-lhes companhia no parabéns para você. Do lado de fora da pizzaria, a única testemunha era eu. Impressionada e enternecida. Os homens são capazes de sentimentos involuntários. Lá e cá.

Tenho tido experiências muitas com os homens. Pela vida. A começar pelo meu avô, o pai que tive. Um homem incapaz de levantar a voz para minha vó. Sempre elegante, um espelho de bolso era seu companheiro fiel. Sensível, percebera, na minha infância, que carrinhos não eram minha brincadeira preferida. Fazia para mim boizinhos com chuchus, apanhados ali, na horta do casarão antigo. A brincar no pequeno córrego, ele fazia rodas d'água com cascas de cana de açúcar. A mim, suas últimas palavras não foram de si, nem foram de lamento pela vida que se esgotava. Foram palavras de esmero com uma mulher: Você cuida da sua avó. Os homens são capazes do amor. Ontem e sempre.

Cotidianamente, não sou Alice, é sabido. Mas ainda assim os homens dispensam a mim tratamentos que dispensam às mulheres. Outro dia, encantei-me com um cacto que crescia rente a um muro da casa em frente ao prédio onde trabalho. A casa, sem moradores. Comentei com o segurança do prédio sobre a planta, pedindo-lhe se não tinha coragem, à noite, longe da vista do bairro, de arrancar o cacto para mim. Onde está, vamos lá, disse resoluto. Atravessamos a rua. Esse aqui? Avisei-lhe que havia espinhos. Arrancou. Deu-me. Machucou sua mão não? Resposta tipicamente masculina: Não, mão de homem. Involuntariamente queria dizer que as minhas não são mãos de homem. Não me senti ofendida, no entanto. Os homens são capazes de gentilezas. Aqui e ali.

Dia desses, final do expediente. Saio da minha sala e vou despedindo-me de um aqui, outro acolá. Passo pela sala de um colega de trabalho, despeço com um até amanhã. Tchau meu bem, ouço como resposta. Meu bem? Ia voltando para fazer uma troça, desisti. Aquelas palavras findaram um longo dia, com mais suavidade. Creio que meu colega falou sem pensar, de estalo. Mas o curioso é que o mesmo já aconteceu por duas vezes. Os homens são capazes de palavras aprazíveis. Seja onde for. Ou quando for.

Volto a indagar por que o homem que se apaixonou por Lili Braun tornou-se outro, no casamento. Assim como os companheiros das minhas amigas, no mais das vezes. é que os homens são como cactos, essas espécies fitológicas admiráveis, mas com espinhos. Na verdade, os espinhos são suas folhas, meio encontrado pelo vegetal para reduzir a perda de água por transpiração e garantir a sobrevivência em ambientes secos. Penso que os homens podem ser como os cactos. São poucamente regados. Ensinam-lhes desde muito cedo a transformar suas folhas em espinhos. Num ambiente hostil, os cactos aprendem que é preciso poupar água, os homens aprendem a preservar-se de sentimentos. Todavia, ainda assim, é possível reconhecer neles um encantamento. Nos cactos, nos homens. Apesar dos espinhos.

Alice Zanella
Enviado por Alice Zanella em 19/07/2017
Código do texto: T6058990
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