Muro

às vezes o dia amanhece cinza. cinza de um jeito que eu não gosto. cinza vazio. cinza solitário. cinza nostálgico. às vezes amanheço só, só o pó do muro que já fui. já fui um muro cinza alto, forte e que poderia ser visto há milhas de distância. já fui um muro pintado por tintas tão vivas, por mãos que me apreciavam uma bela tela. às vezes amanheço recordando das machadadas que eu, muro, levei. dos murros que levei da mais bela mão que me pintou quando lhe disse "adeus". lembro das mãos inchadas daquele dia de julho. cada machadada que foi derrubando-me e transformando em pó o tão belo muro que fui... o vento soprou-me até tão longe de casa e o sol queima forte meus olhos, até enxergarem esse tom de cinza. não posso negar que foi exatamente isso que confundiu meu coração de muro, o cinza. era minha cor preferida, eras minha tinta preferida. as noites ecoavam os tons de minhas paredes. às vezes o dia, nitidamente, chora comigo e quando penso que a água lavou todos os resquícios das pinturas, lembro de como aquelas mãos sabiam apreciar e transformar eu, muro, em uma valiosa tela e hoje... hoje sou só o pó daquele muro, num cinza renegado e que se tornou cinza por falta de cuidado, se tornou cinza por alguém ver que sou só um muro. às vezes sinto o mesmo que senti no dia que o pintor chegou com teus pinceis e o muro estava sendo levado para outro lugar, às vezes lembro de conseguir imaginar tão nitidamente os pedaços de um coração derretendo desacreditado. às vezes me lembro e choro por não ser mais aquele belo muro, choro por ter me tornado só o pó e por ter tentado lavar a tinta... desculpa-me, pintor.

Carmen Tina
Enviado por Carmen Tina em 17/07/2017
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