FILHARADA

“Filhos? Melhor não tê-los! Não tê-los, como sabê-los?” --- Poema ENJOADINHO, do Marcus Vinícius, 1960. Chamá-lo assim, parece até que foi meu amigo íntimo... tempo do uísque, frase clássica: “O uísque é o melhor amigo do homem - cachorro engarrafado.”

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Oficiais “100 anos de samba” em 2016 e lembrei uma estória real, familiar, de antepassados da minha amiga carioca.

Português-portuguesa casados desde “lá”, fizeram aqui dois filhos e duas filhas, pai recomendando aos rapazes que não casassem oficialmente com nenhuma, em especial brasileira. O filho bonito era alourado.. e não gostava de mulher branca: ancestralidade usar e abusar da senzala? Engravidou uma adolescente, logo expulsa de casa pelo pai - o português, em todo caso, mandou que ‘cumprisse com o dever’ e o rapaz alugou uma casa. Três meninos! Ora, desde jovem ele amava carnaval e era o “príncipe” (atual mestre-sala) de uma primitiva escola de samba, do bairro do Estácio (ou “Iaiá me deixa” ou “Iaiá formosa”???), galã deixava crescer um pouco o cabelo, natural amarelo de fidalgo, e as irmãs solteiras costuravam a roupa justa acetinada... Em casas separadas, moravam perto do centro da cidade, início de subida para Santa Teresa - trajeto a pé, sem cansar, Os meninos também desfilavam, ala infantil, todo ano a garotada do bairro vestida de... chineses (nada a ver), com chapéu e rabicho de linha preta... Ora, sedutor, envolvia-se em segredo com muitas moças e prometia que, no próximo ano, influenciaria junto aos diretores e esta seria a porta-bandeira. Até que uma foi mais sabida e o envolvimento foi mais sério, prolongado, muito além de fevereiro-março. A de casa engomava para ele o terno branco (tornou-se especialista lavadeira profissional, um dinheirinho extra...), impecável e perfumado. Ao início da tarde de sábado, a fatídica lenga-lenga, “Vou à padaria...” (de esquina?), e só reaparecia ao final da noite de domingo, sujo, cansado para ‘tudo’, fosse lá o que fosse, deitava e roncava alto. Grosseira infidelidade. A de casa cansou, muita humilhação semanal, e o largou com as três crianças, agora emprego de costureira, e sobreviveu, de tempos em tempos mandando chamar os filhos dentro de casa por uma vizinha amiga: muita choradeira. Ele instalou a segunda mulher que por sua vez buscou um sobrinho, menino acaipirado, custou a aceitar sapato, no interior de Minas Gerais. Ora, algo parecido, tanques coletivos, a substituta arrumou freguesas para roupa lavada e passada, os enteadozinhos como ‘carregadores’ sem bicicleta. Nunca os maltratou. Início do século XX, circulavam nordestinos violeiros e a princípio as mulheres do lugar pagavam por um rápido ABC cantado... “Estória de seu Antônio e dona Cota”. O coro dos meninos, abraçados, era “Queremos-nossa-mãe!” A terem que dividir o uso dos tanques, a guerrinha da vizinhança feminina logo acabou. Crianças se conformaram... Ou porque caminhavam muito eretos, posudos ou alguém estudara a História do Brasil, foram apelidados de Marquês e Marquesa. Anos passaram. Filhos adultos. Antônio comprou um terreno em subúrbio, construiu casa, mas os filhos se recusaram a mudar, trabalhavam perto de casa... Aí, bonde é sempre local de encontros, conheceu mais uma - não muita idade, separada do marido, sem filhos, fez um filho com esta. Passaram a ser duas... de casa. Quartas mulheres e quintas? Outras?! Não. Galinhagem de rua acabou! Ficou assim - instalou-a na casa de subúrbio com o menino. Terra nos fundos do terreno, ela criava galinhas, havia plantações. Passava o fim de semana com esta (igual como no tempo da primeira), não mais época de terno branco elegante engomado; para a segunda, levava ovos (gemada com fama publicitária ou de fato ajuda?), amora e carambola; no próximo fim de semana, voltava de trem, por conta própria com um roubado pudim mineiro de ovos e carambola em compota estrelada, porque de imediato só geleia de amora, o licor vermelho demorava meses de incubação. Nunca se viram, sempre se odiaram, o intercâmbio era por conta do safado.

O menino cresceu complexado (familiares nunca percebem ou dizem o corriqueiro ‘vai passar’ / conheço esta frase num tempo moderno...), sempre enfezado. Curso técnico de desenho para metalurgia.

Quem sai aos seus, não degenera, dizem. Muitas namoradas em dias inconsequentes, mãe morreu, agora sem vigilância, namorada adolescente frequentando a casa, engravidou-a, recomeçar parecido - pai aposentado veio morar ali com a segunda, mandou que ele ‘cumprisse com o dever’... Casou e fizeram onze filhos.

LEIAM meu texto “Bananas verdes”.

NOTAS DO AUTOR:

“PELO TELEFONE” - Em 1916, Biblioteca Nacional, registro de Donga, gravação do primeiro samba, em verdade ritmo de maxixe (ou tango-samba, como então saiu no Jornal do Brasil), sucesso no carnaval do ano seguinte - ainda sem a atual mistura de classes (ao menos durante quatro dias): ricos em bailes de clubes e corso (carreatas), classe média com ranchos e pobres nos festejos populares de rua, cordões anárquicos e ‘modernas’ escolas de samba.

VAI PASSAR - Música do Francisco... - 2013.

ENFEZADO - Na época dos escravos, havia somente urinóis, dejetos humanos atirados ao mar, certamente era um homem irado, enraivecido. Esta palavra tem origem na ideia “cheio de fezes”. Memória triste...

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 16/07/2017
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