Resquícios e Lembranças

Há muito tempo atrás, eu morava em São Valentim, Rio Grande do Sul. Comecei a ir à escola com 11 anos de idade. Ia a pé, de manhã cedo, com chinelo, porque sapato não tinha.

Todos os professores eram bravos. Os alunos que cometessem algum erro eram punidos e tinham que estender a palma da mão para uma professora dar 6 reguadas. Além disso, existia o castigo que consistia em se ajoelhar em grãos de milho. Aqueles que ficavam sem recreio não podiam lanchar (mesmo sendo os próprios alunos que traziam seus lanches). Havia também, os que comiam em horários inapropriados, como na hora da aula: também recebiam um castigo. Eu ia com uma cestinha e levava batata cozida, fatia de pão. Havia duas meninas que escondiam a merenda atrás de arbustos e outros esconderijos para comerem só ao retornarem da escola, mas alguns alunos descobriram e roubaram e ainda colocaram pedras e merda de cavalo no lugar onde as comidas estavam escondidas. Eu faltava muito à escola, porque tinha que ajudar em casa.

Naquele tempo, brincávamos de lenço – formávamos um círculo e um colega colocava o lenço atrás de uma pessoa sentada e então esta pessoa corria atrás daquele que colocou –; anel; jogávamos bola; brincávamos de esconde-esconde. Um fato que acontecia é que alguns meninos abriam a porta do banheiro quando havia uma menina dentro. Eu fazia bonecas de pano, a espiga de milho também fazia de boneca. Subia nas plantas para comer frutas. Deslizava nos morros com uma tábua nas costas.

Eu tinha que ir buscar água longe, em uma fonte. Lá havia patos e gansos bravos que corriam atrás de mim e parecia que, quanto mais eu corria, mais continuavam me perseguindo. Havia também porcos soltos, bravos. Eu tinha que levar comida para eles. Ia com a ponta dos pés, para que não me escutassem, mas sentiam o meu cheiro e então eu corria depressa.

Vi muitas tempestades, passei muito medo. Os trovões e os ventos mexiam a casa; o granizo quase quebráva-a; a chuva fazia as goteiras aparecerem. Quando nevava, o peso da neve quase quebrava o telhado.

Comecei a cozinhar nessa época. Minha mãe estava sempre doente e no hospital (com trombose e doença no coração) em tratamento. Então parei de ir à escola e comecei a fazer comida para 13 pessoas. Cozinhava feijão, sopa, polenta, galinha, batata doce. Havia um forno de pedra, que tinha espaço para 24 pães.

Meu pai era bem severo. Ele, exigentemente, mandava nós trabalharmos. Não conversava muito conosco. Quando um filho casava, ele dava um pedaço de terra. De 6 filhos, somente 1 estudou: o último filho, porque não podia trabalhar na roça, pois saía sangue de seu nariz sempre que trabalhava, senão também ficaria sem estudar. Minha mãe dizia para seus filhos que não se assustassem, que ela era nervosa porque estava doente.

Eu e meu irmão mais velho lavávamos as roupas no tanque. Aprendi a costurar, porque as roupas não eram compradas prontas como hoje. Havia poucas roupas, 2 mudas para cada pessoa: enquanto usávamos uma muda, a outra era lavada. Eram frágeis e eu remendáva-as. As mulheres usavam vestidos. Os ratos levavam as roupinhas das crianças embora para fazerem ninho com elas. Eu fazia trança para fazer chapéu e, com 15 anos, bordava para fazer enxoval. Fazia escondida, pois meu pai não queria que eu gastasse querosene, mas eu precisava para fazer luz, porque eu bordava à noite.

Se cultivava a terra com boi (arado) ou enxadas (uma para cada pessoa). Havia também foice, machado. Pessoas vinham, com mulas, para pegar os sacos de trigo/milho vendidos. Para pegar os porcos, vinham de carroça. O que meu pai comprava era farinha de trigo e de milho, no moinho. O sal e o açúcar branco também eram comprados fora, mas o restante, era tudo cultivado em casa. Passávamos as datas comemorativas em casa, eu só fazia bolachas na época de Natal e Ano-Novo. Os parentes vinham de cavalo ou a pé: passavam o domingo conosco e, depois, ficávamos meses/anos sem nos vermos.

Com 20 anos, comecei a namorar. Houve um tempo em que nos deixamos e, após alguns anos, reatamos. O namorado vinha a cada 15 dias, a pé. Não nos dávamos as mãos, não nos beijávamos. Não íamos à baile, festas: era só em casa. Nos víamos só aos domingos à tarde. Depois de meses, também aos sábados à noite. Depois de 1 ano, casamos.

Após 3 anos de casados, fomos morar em São Lourenço do Oeste, Santa Catarina. Era tudo mato, vi muitos macacos. Escutava barulhos que os bichos faziam à noite. Mas as transformações, pouco a pouco, aconteciam: máquinas trabalhando, fazendo construções, estradas, asfaltos. Meios de transporte surgiam, tecnologias, água encanada. Do passado só restaram resquícios e lembranças dos momentos vividos.

Antonio Carlos Valentini
Enviado por Antonio Carlos Valentini em 16/06/2017
Reeditado em 19/10/2017
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