O comício

Pancrácio está desesperado. São 16:30 e seu expediente acaba às 17.

“Chega o carnaval e não chega o fim do expediente!”, resmunga nosso amigo.

Ele anseia firmemente pelo fim de semana, que desta feita, não poderá ser pior do que nenhum dos anteriores.

Quem acompanha nosso herói já percebeu que ele não prima pela sorte, digamos assim. Homem apaixonado por sua esposa (que por vezes demonstra ter parte com o diabo quando o tortura com algum pedido gigantesco).

Dois filhos maravilhosos, Afrodite, de quinze anos e Junior, o mais velho. Bom, Junior é um caso à parte no quesito “maravilha”. Rebelde sem causa, defende todo e qualquer indefensável que esteja alinhado com seu comunismo pós-adolescente-que-ainda-depende-economicamente-do-papai.

Certo ex-presidente virou “herói do povo brasileiro” dentro de sua própria casa, aquela da Taquara, que é perto e tão longe de seu local de trabalho!

Deixa pra lá, amanhã é sábado, o dia hoje tá lindo, amanhã vai dar praia (em que pese lembranças desagradáveis de certo passeio à praia), chega em casa cedo, combina tudo e amanhã passeia feliz da vida. Afinal, uma semana inteira de sol e calor, a despeito de estar no outono, “tem que firmar o tempo até domingo, pelo menos!”

Carnaval chegando e nada de dar 17... Dá uma “pescoçada” pra fora da janela e invernal sensação lhe sobe pela espinha. Multidão de gente vestida de camisa vermelha, com sanduíches de mortadela regado a tubaína na mão, começa a passar em frente ao seu trabalho... Palavras de ordem ofensivas a sabe-se lá quem...

Tem tudo pra dar meleca. Daquelas bem verdes e gosmentas.

Chegam as 17, finalmente! Todo pimpão e faceiro, lá vai Pancrácio rumo à Central do Brasil!

Pelo menos é o que ele imaginava, já que, ao sair do prédio, verdadeira avalanche, arrastão de gente o leva na direção contrária! Ouvindo explosões ao longe, tudo parece conspirar contra sua singela vontade de ir pra casa...

Ele tenta ir na direção contrária, mas se sente tal qual um espermatozóide tentando nadar de volta para sua aconchegante casa.

E sobrevém um cheiro de gás lacrimogêneo, as lágrimas começam a vazar dos olhos, caindo sobre seu terno novinho de 199 reais, “promoção de primeira!”. Olha em volta e vê que só ele está sem capacete nem sequer um lenço pra tentar amenizar os efeitos do gás!!

De repente, lá tá ele, ao lado de uma manifestante histérica, filha de família abastada, moradora da Zona Sul, já fichada na polícia, esquerdista “gourmet”, sovaco cabeludo, de braços entrelaçados, de um lado ela, do outro um barbudo com cara de ator maconheiro de segunda categoria, quiçá estudante de 37 anos de idade de alguma faculdade pública, à frente da turba vermelha, conseguindo a duras penas segurar sua pasta “tipo 007” (chinesa, ou ainda de procedência duvidosa, como queiram imaginar), olhos arregalados, sendo verdadeiro escudo humano!

“Abaixo o governo! Abaixo os político! A gente fazemos revolução!” era o que a massa burra gritava, e ele, voz destoante, exauria os pulmões gritando silenciosamente “Para com essa meleca! Me solta, seu maconheiro nojento! Me larga, sua mal-amada fedorenta!”.

E a turba enlouquecida, achando que ele estava com ela, exaltava a presença daquele homem de terno que estava ao lado das “legítimas aspirações do povo pobre e oprimido”:

“De terno, sim! Só falta o carmim!”, repetia a massa de olhos esbugalhados – parecia a senha pra desgraça: aparece alguém com tinta spray vermelha e pinta a cara, a roupa de 199 reais, sua 007, até o cabelo de nosso herói, que não consegue entender como conseguiu parar no meio daquela confusão.

A massa o ergue nos braços, troféu da defesa do povo, como se fosse lídimo e verdadeiro defensor daquelas ideias doidas!

Perto da Cinelândia, o bicho pegou. Borrachada da PM. Gás, explosões, cavalos, choque! Inferno total! Foi parar na escadaria da Câmara dos Vereadores, com um microfone na mão e a 007 na outra. Holofotes das redes de mídia escrita e falada virados para ele, cercado de bandeiras vermelhas e políticos casuístas.

Rouco – aliás, rouco não, parecia não ter cordas vocais –, com o microfone na mão, tentava gritar: “EU QUERO IR PRA CASA!”, apontando pra trás. O povo urrava de felicidade e exaltação, repetindo o que entendeu: “AQUI É NOSSA CASA!”.

“NÃO, NÃO, SÓ QUERO IR PRO TREM!”, ele sussurrava aos berros tentados, e a massa entendia e repetia “NÃO VÃO MACHUCAR NINGUÉM!”.

Do alto de sua rouquidão, tentou ainda urrar, já em copiosas lágrimas “NÃO ERA PRA EU ESTAR AQUI!”, ao que a turba entoou: “SIM, SIM, VAMOS INVADIR!!!”.

Aí, danou-se. Aquele enxame de loucos derrubou as portas e a barricada da polícia, invadiu a Câmara, quebraram tudo, até que uma borrachada certeira o jogou no chão.

Acordou algemado no leito de um hospital, polícia, repórteres e seu filho orgulhoso sorrindo pra ele: “pai, você é um dos nossos!”

Com menos três dentes na frente, conseguiu gritar “fai fe ferrar, feu fiado, fio de uma quenga!”.

Quem o acalmou agora foi o enfermeiro e sua inseparável injeção de sedativo.

Não sem requintes de crueldade. Era, de novo, o negão da Benzetacil.

Gilson Macedo
Enviado por Gilson Macedo em 25/05/2017
Reeditado em 25/05/2017
Código do texto: T6009034
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