Terra em Transe, Gama e Roberto Carlos

Possuo algumas frustrações na área cultural. Exemplo, além do "Ulisses", de Joyce, não consegui, pasmem, ler todo o "Grande Sertão, Veredas", de Guimarães Rosa. O do irlandês só fiz duas tentativas e não passei das 30 ou 40 páginas, desisti. Mas o do mineiro fiz várias, pelo menos umas dez, não tem jeito, acho que não assimilo a linguagem, o ritmo, estranho aquele sertão diferente do meu e etc e coisa e tal, mas ainda vou fazer algumas tentativas, afinal li e gostei de "Sagarana".

Outro grande frusração diz respeito ao cinema. É que, além dos filmes, "A Chinesa", "Blow Up", "A Bela da Tarde", "Cidadão Kane"..., também não consegui entender, pasmem outra vez, alguns filmes do saudoso Glauber Rocha, principalmente aquele que fi apontado como sua melhor obra, "Terra em Transe". Já tentei várias vezes e fico mais perdido que cego em tiroteio. Nao consigo entender. Pode? Sei lá, para mim pode, eu devo ser medíocre na apreciação de símbolos e mensagens cifradas. Digo isso porque alguns amigos volta e meia dissertam sobre esse filme e eu fico achando que eles estão se amostrando, quando, na verdade, estou com inveja deles por terem entendido o filme e eu não. Fico quase recalcado. Juro.

Mas um dia desses li algo numa revista que além de reduzir um pouco meu recalque por não entender o filme me fez rir muito, felizmente estava com a bombinha de asma no bolso. Seguinte: em 1967, ano do lançamento do filme, tempo da ditadura, o presidente (ditador) era Costa e Silva, eleito pela linha dura, Glauber estava a braços na luta para obter do Itamaraty o consentimento para lançar seu filme do Festival de Cannes. A imprensa estrangeira estava lhe dando muito espaço e lhe fazendo muitos elogios. Mas o ministério da justiça estava vetando. Faltando apenas um dia para o lançamento, de repente o ministro da justiça autorizou o Itamaraty a dar o consentimento. Muita gente se surpreendeu e ninguém conseguiu desvendar o motivo. Só agora ele aflorou, e isso devido a algo risível (ou não?): o Rei Roberto Carlos havia sido presenteado no exterior com um carro Jaguar. Acontece que para trazer o carro para o Brasil teria que pagar uma fortunoa pela importação, o Rei que não era bobo, resolveu tentar junto ao ministro da justiça, na época, Gama e Silva, a dispensa do imposto. Conversaram, no meio da conversa, entraram no caso da liberação do filme de Glauber, "Terra e Transe", então o ministro explicou a liberação. Segundo ele resolveu, devido ao clamor do estrangeiro e da mprensa nacional, além dos intelectuais, assistir ao filme para tirar suas conclusões. Fez isso, disse que assistiu a "Terra em Transe" junto com o estado-maior dos censores. Logo depois de alguns minutos, algumas cenas, o principal censor começou a roncar, outros fizeram o mesmo, o ministro tamabém não estava entendendo nada, chamou o técnico encarregado da projeção e perguntou se nao tinham trocado os rolos do filme. A resposta foi não. Conclusão de Gama, se ele e nem os censores entendiam nadinha do filme, não conseguiam nem assisti-lo, quanto mais o cidadão comum, não havia, portanto, motivo para anão liberar o filme. Liberou, sem cortes, sem nenhuma objeção. Eprometeu ao Rei levar seu pleito ao presidente, ou seja, a dispensa do imposto do Jaguar.

É claro que a liberação se deu porque o ministro não viu no filme nenhuma crítica à "Revolução", e não podemos segir os mesmos critérios de quem censura as artes. Mas o fato ilustra a dificuldade para se entender o filme de Glauber. Agora, continuo fascinado pelo personagem Glauber. Era um figuraça. Foi seu melhor personagem. Fi um polemista nato, ele inventou o cinema novo. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 25/05/2017
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