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De certo que ali não havia muito movimento naquela hora, porém, de qualquer modo, era isso o que me atraia, talvez. Em contrapartida com os movimentos da vida urbana, assistir os andamentos do pacato lugar, era sempre uma aventura, que eu não cansava de usufruir. Fosse de longe ou de perto, ali estavam os meus olhos descobrindo os novos formatos que saltavam à vista mais acurada, mas só daqueles que se embrenham no mundo interior com tempo firme ou avesso. São tempos em que se assobiam trilhas de uma nova estação, de mudança na natureza e assim também o meu dial reverso para outras antenas.

Mas não foi com esta intenção que passei a escutar o derramo, me ative por considerar algo que me chamou a atenção e fiquei imaginando que não seria prudente sublevar meus pensamentos. E então vieram a mim como se fosse um show de várias orquestras, o som estridente de suspeitas conversas dos asas de telha que por ali se revolteavam. E ensurdeci ao ouvir toda aquela gralha, apurei os ouvidos e passei a entender a grande charanga de todas as espécies que se alternavam em bandos por entre os muros, os galhos, as telhas, os postes e os fios de luz que constavam do meu quadrado. Pequeno, na verdade.

Continuei amoitada agora com os olhos em riste me dirigindo às garças silentes que se abandavam para os lados de cá do mar se arriscando e voando baixo no riacho. Pareceu-me que brincavam ou faziam estripulias longe do seu natural espaço que ruge sem cessar. Elas são donas da beira da água junto com outros vários pássaros que passam o dia na maior calma, mas com a aterrorizante sina de abicar sua comida, farta por ora, porque ali também impera a ordem do dia: todo mundo trabalhando para seu sustento, eu inclusive.

Na outra ponta as enigmáticas conchas se postam por ali desprovidas de quem deram a luz, jazem descarnadas, recortadas pelas pedras e areias do mar, quebradas por redes de pescadores, de tarrafas brincalhonas que arrastam para este canto seco, dando assim um fim ao seu roteiro. Algumas estão fatiadas, outras permanecem inteiras ou apartadas de sua metade. Mesma confusão da vida delas que não depende de seus próprios pés para selar seu destino, mas sim com o mar na sua supremacia natural.

Uma inquietação passou por mim, leve como a traição, fugaz no propósito, porém clara na finalidade. Antevi que a sombra da praia não virá mais das nuvens benditas que brincam o dia inteiro entre sombrear e acalorar, mas sim de coloridos quarda sóis enredados um no outro, a gritaria da natureza será substituída pela corneta do sorveteiro vibrando para aturdir, o imenso vazio será tomado pelos corpos em volume excêntrico nas areias, os pássaros sumirão em bandos, a garças correrão a se esconder, as conchas milagrosamente se enterrarão rapidamente antes de serem pisoteadas, a bicharada inquilina do quebra mar se afundará de medo. Então percebi: o verão vai chegar.

Vera Renner
Enviado por Vera Renner em 24/05/2017
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