SEM INSUFILM, PELAS VIAS DOS FATOS

Digo que o que aqui vou relatar, com expressão fidedigna dos fatos, não é novidade alguma: basta rodar, com olhos atentos, o todo da nossa cidade.

Como de costume , final do dia, eu vinha pela avenida congestionada a esperar pela abertura do semáforo para que a vida seguisse.

Em meio às notícias do rádio, sempre mais surpreendentes a cada dia, eu pensava comigo o quanto mudamos enquanto sociedade civilmente organizada(?).

Olhar para as calçadas de Sampa é entender o quanto nos desorganizamos na dignidade da vida coletiva e claro que, para entender minimamente os porquês do tudo aquilo, eu precisaria de muitos e muitos semáforos eternamente parados.

Foi quando, de súbito, eu percebi que alguém me gesticulava do lado de fora do carro.

Um senhor de meia idade, mulato, calvo e muito magro, me fazia sinal com o polegar e o indicador direitos, mimetizando que queria só um pouquinho de algo...que eu não entendia o quê.

Também percebo que, por mais que eu tente, nunca passo “imune” aos semáforos fechados da cidade, embora eu fuja da dor interna tanto quanto a vida pede calor lá do lado de fora.

Abri a janela do carro contrariando as orientações de segurança pela passagem “insufilmada” e hermeticamente fechada que se via ao meu derredor.

Esclareço que não tenho “insufilm” nem no carro, nem nos olhos e nem na alma.

Então, pude ouvir o que ele tentava me expressar com gestos: “só para meio marmitex moça, pelo amor de Deus, estou com muita fome”.

Engoli a seco...

Olhei para o interior do automóvel aonde sempre deixo algo que possa matar a fome perene do mundo. Nada encontrei.

Num ato de pura injustiça, eu havia acabado de mastigar algo ali mesmo, para matar a ânsia de tempo pelo dia.

Meus simples pertences estavam hermeticamente trancafiados no porta-malas do automóvel e o semáforo, numa atitude insensível à fome do outro, se abriu no automático da vida, sempre rumo ao nada.

Rapidamente ainda nos foi possível trocar algumas palavras:

”ô moço, o senhor me desculpe, saí do trabalho e não tenho nada à mão para lhe ajudar”.

Ao que fui surpreendida pelo inusitado: “Não dona, você tem tudo!”.

Obviamente que aquela constatação seria mais que óbvia, quase uma cobrança duma dívida notória, não só minha, quiçá algo agressiva, em meio à nossa flagrante desigualdade social, aliás, sociologia cada vez mais surreal pelas tribos da cidade; ali, uma triste realidade visceral encenada no asfalto aberto, teatro da vida crua e nua, que me “desconcertaria” a alma, não fosse o carinho que recebi de imediato, provavelmente em resposta à minha expressão facial de surpresa e desconforto:

“Sim, você tem tudo dona...é porque você tem o principal: educação e consideração”.

Senti que lhe devolvi um sorriso desajeitado e segui pelas vias dos fatos a comigo deduzir:

"Sim, há vezes em que os fortes aprendizados saem donde a gente menos imagina..."

Tatuei aquela frase da cena, essa, que lhes enceno aqui.

“você tem o principal”.

E segui pela avenida a aprender:

“Precisamos de muito pouco para mudar o mundo”, foi a lição que me ficou pelo pensamento.

Mas a leitura hermenêutica do que vai nos corações...bem, só a Deus seria possível decifrá-la.