O CELULAR DE NATANAEL

     Sob a perspectiva do “politicamente correto” pode até soar como preconceituosa a história que vou narrar aqui, mas garanto que não. Apenas constatei, ao longo dos anos, que existem pessoas predestinadas a “pagar mico”, como se diz na gíria carioca. O Natanael é uma dessas, coitado! Sujeito semianalfabeto que, aos dezoito anos, engravidou a namorada, Everlândia, lá no sertão do Ceará e foi obrigado a se casar com ela para reparar o “mal” que fizera à moça.
     Quando o menino Bryan Christian já estava com seis anos, ele resolveu vir tentar a sorte no Rio de Janeiro. Aqui chegando, foram morar na favela do Rola, em Santa Cruz, onde ele começou a trabalhar como servente de pedreiro com os parentes que já estavam estabelecidos na comunidade, há muito tempo —“quase cariocas” -— como diziam.
     Isso aconteceu no início dos anos 90, quando houve aquela "explosão" dos telefones celulares que serviam mais como um adorno do que como meio de comunicação. Sorte daquele que conseguia completar uma chamada! Dentro de casa, era missão impossível, não havia sinal.
     O sonho de Everlândia era ganhar um celular do marido, para ligar “pra mãinha” que ficara muito doente no Ceará.
     Pois bem, logo que recebeu o primeiro ordenado, Natanael resolveu esbanjar. Comprou logo três aparelhos. Assim, sua família poderia se comunicar à vontade, além de entrar para o círculo das pessoas chiques.
          Certa manhã de sábado, Everlândia recebe um telegrama de um parente, comunicando-lhe que a mãe dela se encontrava em estado terminal e gostaria de vê-la pela última vez. Naquele mesmo dia, ela viajou, deixando o pequeno Bryan aos cuidados do pai.
     Na segunda-feira, a criança amanhece ardendo em febre e reclamando de dor na garganta. Entretanto, o pai tinha de trabalhar. Então, como pai zeloso que era,  foi à farmácia e, após consultar o balconista,  comprou amoxilina, novalgina, pastilhas, spray e tudo o que lhe garantisse a saúde do filho.  Pronto! Agora, podia ir trabalhar sossegado! Deixou a criança na cama e lhe deu as seguintes orientações:
     — Braizim, paim tem que trabaiá, mas meu fio não saia pra fora, mode que tá chuveno. Se precisá de alguma coisa é só telefoná que paim vem correnno, tá?
     A criança balançou a cabeça afirmativamente e o pai se foi. Preocupado, mas se foi...
     Lá pelas dez horas, Natanael estava angustiado, andando de um lado para o outro  e comentou com o primo, companheiro  de trabalho:
     — Ciço, eu tô muito neuvoso,rapaz, dexei meu Braizim dueinte sozim em casa . O bixim acordô caguela infuleimada e chei de febre...
     — Ué, tu não tem celular? Telefona pra ele, cara! Se precisar, tu vai pra casa que eu aviso pro chefe.
     E assim ele fez. Foi lá para o meio da rua, subiu num muro, à procura de sinal e, quando finalmente conseguiu...
     — Alô...! Ahan! Apois tá bom, minha sinhora, muito obrigado! É nessas hora que a gente sabe vê os vizim que tem. Mas, a sinhora pode tá certa que, quano eu chegá em casa, eu vou cumê esse féla da puta na porrada!
     — Que raiva é essa, bicho? O que aconteceu— Perguntou o amigo.
     — Rapaz, eu  vou te dizê uma negócio, o cabra precisá trabaiá e ainda tê que ficá preocupado cum minino, é lasca! Eu dexei aquela peste na cama e dixe pra ele num saí pra fora, mode a febre. Agora, oi aqui! A vizinha tá mim dizeno que ele tá lá FORA DA ÁREA DE COBERTURA! Eu vou matá esse desgraçado!!!
     Naquele dia, ele saiu da obra "cuspindo fogo", em direção à estação de trem, sem ao menos dar tempo para que o primo lhe explicasse o que estava acontecendo com o telefone.
     Não sei que castigo ele infligiu à criança, se é que o fez. De qualquer forma, não condeno a atitude desesperada desse pai. Imaginem o choque que deve ter sido para ele ouvir aquela mulher estranha, atendendo o telefone do filho. Provavelmente, pensou que o pior acontecera e que ele seria punido por ter deixado uma criança doente sozinha em casa.
     Em sua ingenuidade, Natanael não percebeu que a verdadeira culpada era a companhia telefônica que não cumpriu a sua função, deixando-o, no momento em que mais necessitava, sem o serviço pelo qual pagara. 
     Pobre Natanael! Pobre Everlândia! Pobre Bryan Christian! Pobres de nós, brasileiros, vítimas do descaso e da impunidade!
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 22/04/2017
Reeditado em 22/04/2017
Código do texto: T5978462
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