A garota

E ela foi sozinha nascendo. Mas sozinha mesmo naquela solidão do abandono premeditado.

Não, a sua mãe não a queria. Queria apenas cuidar do marido e do filho asmático pouco mais velho. Mais uma criança seria difícil demais para a ainda jovem professora, para quem faltava apoio, divisão das tarefas e compreensão do marido.

Nasceu vesguinha, enxergando pouco. E junto, inúmeras dificuldades de adaptação à vida.

No meio de uma estúpida timidez, meio que pedindo desculpas por ter nascido e licença para viver, foi, aos poucos, tomando conta de algum mísero espaço permitido. Logo no início da infância, os pesados óculos, mas antes algumas doses de calmantes prescritas pelo médico, um tanto irritado pela impaciência da garota diante dos aparelhos oftalmológicos.

Mas parecia que ela tinha memórias de um passado muito distante. Não sabia dizer. Ninguém perguntava. Por qualquer coisa vinham as broncas carregadas de exagero e pela fala alta pela boca da sua mãe. O pai lhe olhava feio, com muita gravidade, tendo o cuidado de, naturalmente, empurrar com a própria testa, ampliando as dimensões da pele, os cabelos para trás. Isso lhe dava medo. Era como se sentisse criminosa por algum motivo obscuro, completamente negro.

A garota sentia também, além do estrabismo que a deixava calada, um enorme tijolo no peito. Memórias passadas lhe traziam medo. O medo a acompanhou sempre, nos detalhes, nos olhares, nas palavras. Medo de tudo, medo do nada. Medo de errar. Medo de perguntar. Vergonha das pessoas, de responder alguma pergunta. Medo de ser boba. Medo do ar.

Kika Moraes
Enviado por Kika Moraes em 20/04/2017
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