CORPO FECHADO

Meu pai tinha uma casa no Chapéu Virado – Ilha do Mosqueiro, onde sempre íamos passar férias, aproveitar os feriados ou só o fim de semana quando podíamos, pois a distância (só 70 km) compensava para irmos ao nosso paraíso tropical em apenas uma hora.

Não sei em qual situação ocorreu o fato que vou contar, mas a realidade é que para chegarmos à casa do meu pai tínhamos que passar por uma encruzilhada escolhida pelos macumbeiros do lugar para colocarem seus despachos de agradecimentos ou de seus pedidos, alguns inconfessáveis, para suas divindades.

Naquele fim de semana quando íamos para o nosso éden particular encontramos em uma das esquinas da curva que nos levava ao destino um despacho particularmente enfeitado com adereços coloridos, comidas e bebidas. Quando cheguei a casa, após arrumar as malas, fiquei pensando qual seria a finalidade daquela oferenda. Felizmente tinha levado o violão e, de uma só vez, saiu o “Corpo fechado”:

Botaram um despacho na curva da esquina

Pra ver se essa mina se afasta de mim

O caso que a dona tem corpo fechado

Não é mau olhado nem praga ruim

Macumba ou despacho numa encruzilhada

Que pega a menina, que a tira de mim

Nem pondo quebranto, pedindo pro santo

A força do encanto não acaba assim

“Trodia” fizeram trabalho

Mexeram com alho, espetaram vodu

Plantaram feitiço na esquina

Farofa na tina, assaram urubu

Saibam que a menina está curada em galho de cidreira

Vacinada até pra olhar de seca pimenteira

Faz é figa pra capricho de quem quer seu fim

Que nem você mulher ruim

Saiba que essa dona não dá bola pra quem lhe persegue

Por mais que você se dane e o diabo lhe carregue

O meu caso com a menina vai ficar assim

Plantaram um despacho na curva da esquina...

Quando mostrei ao Clube do Camelo todos gostaram.

Nessa época estava com uma viagem marcada para ajudar a resolver alguns problemas de minha filha que tinha casado com um alemão e morava em Berlim. Por infeliz coincidência, na mesma época a Assembléia Paraense, um clube chique da nossa cidade, marcou uma disputa musical, um festival tupiniquim, no qual concorreriam apenas músicas inéditas. Como a “Corpo fechado” ainda não tinha sido gravada, foi uma das escolhidas por nós. E aí, quem iria defender? Eu estava de viagem marcada, o Firmino já ia defender a “Lua paraoara”, uma composição dele com o Gervásio. E a minha?

O Edyr logo sugeriu um cantor da terra especialista em samba, que poderia dar uma interpretação especial na música. Gravei um demo, dei uma de detetive, e saí procurando o tal expert. Por coincidência encontrei-o no Mosqueiro e dei o pen drive a ele, com a promessa de que escutaria e daria uma resposta na próxima semana tentando atender a recomendação do seu grande amigo Edyr.

Qual a surpresa que tive ao ouvir a resposta, em um telefonema, dizendo que tinha escutado, gostado muito, mas... E deu uma desculpa qualquer. Não lembro qual foi, mas o fato é que a batata ficou queimando na minha mão, uma semana antes de alçar voo para a terra de Beethoven.

Passei a batata quente, que nessa altura já estava do tamanho de um abacaxi, para o Clube. Deixei o pen drive, a letra e a incumbência de arranjar um cantor, com eles, confiante na criatividade dos Camelos.

Viajei e na volta tive a grata surpresa de saber que o “Corpo Fechado” tinha tirado o quarto lugar, não sem muitas peripécias até o resultado final. O pessoal contou-me a novela:

Tinham conseguido um bom cantor com experiência em uma das melhores escolas de samba do Rio de Janeiro. O Silvinho da Beija Flor, sem muito tempo para decorar a música tinha se atrapalhado na eliminatória, mas o Firmino que estava na percussão ajudou e conseguiram terminar de apresentar a música com apenas alguns percalços. Passamos pra final, com muita reclamação de alguns concorrentes, que não foram consideradas pela comissão julgadora.

- O jurado principal era amigo do pessoal do Clube do Camelo! Esbravejou um concorrente ciumento que tinha sido eliminado.

De nada adiantou e continuamos na disputa.

Na final conseguimos um honroso quarto lugar e a “Lua Paraoara” acho que um sexto. Ali a apresentação havia sido perfeita.

Não encontrava o cantor que descascou o abacaxi, até que, depois de algum tempo, consegui agradecer. Daquele dia em diante o “Corpo Fechado” passou a ser um “hit” do nosso grupo. Uma das músicas que deveria ser gravada em nosso próximo CD. Apresentávamos em quase todos os shows. O brincalhão baixista, Kzam Gama, que nos acompanhava nos eventos apelidou-a de “Porco Flechado”. A “Lua Paraoara” também nos acompanhava frequentemente, afinal as duas tinham conseguido boas classificações em um festival com centenas de concorrentes.

Nas apresentações eu cantava e o Firmino cantava um trecho junto. Com alguma dificuldade, pois como eu não tinha estado presente na disputa da Assembléia, ele tinha decorado um trecho com a melodia diferente. De tanto eu reclamar ele acabou aprendendo e hoje cantamos juntos numa boa.

Interessante que só muitos anos depois fui descobrir o porquê da recusa do primeiro intérprete em defender a música. É que resolvi inclui-la no repertório do CD meu, financiado pela lei municipal Tó Texeira e o amigo do Edyr, que hoje também é um grande amigo meu, foi convidado pra cantar outras composições minhas. Quando conversávamos sobre o Clube do Camelo ele disse mais ou menos assim:

- Sabe, o pessoal do Camelo me convidou pra defender um samba num concurso, mas sabe né, o samba falava num despacho e, sabe, eu não gosto muito de mexer nessas coisas...

Eu não sabia, mas na hora fiquei sabendo. Sabe né... Escutem a música que gravei, com um arranjo do Tynnoko que remete aos afro-sambas, com a conotação sincrética:

http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/73960