AINDA SOBRE A CASA DO LAGO

AINDA SOBRE A CASA DO LAGO

Sim, lá estava a casa. E ali estava o lago. Um ou outro cisne deslizava elegância branca e delicada. E as águas atravessavam lembranças líquidas. E eu. Só olhava.

Era como se um mundo de vida se aproximasse e em mim se abrisse. Feito florezinhas amarelas rasteiras de segredos. Cochichando casos verdes. De mistérios ao pé do lago.

A casa não era mais como havia sido. Sobravam histórias. Sobravam incômodos escuros de fatos debaixo daquelas telhas. Cada quarto com sua incapacidade de acolher. Deixavam fria a cozinha, antes ampla de calor, agora desaconchegada e sedenta de sentido.

Não era mais das quatro pessoas. Era múltipla em anonimato. E eu, da antiga realidade, menos que nada participara. Eu a grande anônima! Mas em mim havia a secretíssima vontade de ter sido ao menos uma inquilina.

Deixei-me ficar aos pés do lago. De coração escurecido. Catando pedrinhas alisadas pela minha sede de quase água.

De alguma forma mergulhava com fantasias de papel. Que por instantes não se desfaziam. Me transformava em pequeno barco. E de lá imaginava que conduzia uma vida súbita. Pelo menos enquanto o vento me apoiava. Rumo à casa que um dia me foi vulnerável.

Podia me sentir passeando pelos cômodos da casa. Então imitava parte do pouco que precisava. Do muito pouco que poderia ter dito se hovesse voz. E foi um querer mudo. Onde o acaso não teve vez.

Sobravam muitas de mim ali. Aquela que um dia fugiu. Outra que atrás não voltou. Ainda uma que, por puro medo, se escondeu no mesmo barquinho de jornal velho. E aquela outra que se fartava de sobras. De restos inúteis de orgulho insano. Essa foi a que mais junto a mim esmolava piedade. E eu ali visitante intrusa de um destino que não me pertencia. E ao mesmo tempo, não passava. E estava sendo impiedoso.

Por que eu não me desencantava?

Algo havia morrido em mim enquanto perscrutava os cômodos daquela casa. Quem sabe o remorso mordendo minhas lembranças. Mastigando feroz as fatias do impossível vir a ser. E eu. Me afogava. E eu. Morria.

Rasgando agressivamente as bordas do barquinho de papel agarrei-me às águas flutuantes. Que refletiam a casa na qual nunca fui habitante.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 03/03/2017
Código do texto: T5929133
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