Cabeça de bacalhau

Cabeça de bacalhau

É sexta e caminho sem vontade para casa. Sem levar no alforje para minha mulher e filhos as alegrias de outros tempos. Deferentemente de tantas outras sextas, aquelas que coroavam semanas produtivas e escancaravam as cancelas de um final de semana venturoso e prometedor de grandes farras, rodeado de velhos amigos também felizes. Há muito que as sextas não me acenam com aquelas bandeiras coloridas e alegres dos tempos das vacas gordas. Tento acalentar-me com alguma lembrança que melhore um pouco o meu astral e tudo o que me ocorre é o título de um romance triste e dramático, não obstante a beleza poética com que o autor, José Louzeiro, soube, aliás como muitos autores brasileiros o fazem, tornar o amargo digerível e até mesmo saboroso: “O estranho hábito de viver”. Feito guariroba com frango, ou uma apetitosa farofa de jiló, ou até uma boa dose de Fernete. Bem! Até compreendo se a maioria das pessoas não gostem. Eu aprecio, até porque um brasileiro da minha classe social e econômica não pode se dar ao luxo de ter um paladar muito exigente.

Enquanto troco passos lentos por estas calçadas apinhadas de humanidade vou pensando nessa gente fabulosa que empurra a máquina pantagruélica do impávido colosso. E aqui quero me referir a esse cara que aprendeu a tirar do estrume flores e frutos. Herói anônimo que produz, que mete a mão na massa. Que se dedica às chamadas atividades primárias e de transformação, que é verdadeiramente o que faz a roda girar. Do tipo destes muitos que posso testemunhar nessa tarde quente de novembro voltando para casa, com a marmita vazia debaixo do braço, aquele que passa de bicicleta com as ferramentas de pedreiro na garupa, aquela dezena de outros com uniformes da fábrica que se aglomeram no ponto de ônibus inadequado e em lugar inadequado, atravancando a passagem de outros, os transeuntes que são obrigados a saltar para a pista de rolamento, repassando o sério problema urbano para aqueles outros tantos que ainda conseguem seguir motorizados.

Como toda sexta, dou uma passada pelo Bar do Caquinho procurando por cabeça de bacalhau.

Quem conhece o Caquinho sabe que ele recebe a todos os seus clientes de modo muito peculiar, com descortesia e proferindo impropérios. E é assim que a moçada gosta dele. Eu que o conheço desde lá de trás é que posso confirmar a nobreza do seu caráter e a grandeza de seu coração. Lá pelos fins da década de 90 eu era gerente administrativo do Lar Vicentino e a entidade mantenedora da casa tinha uma ambulância que se prestava, com muita dificuldade, a oferecer condução a pessoas enfermas carentes. Eu mantinha para aquele serviço um corpo de voluntários com quinze motoristas. Pois essa gente generosa e desapegada, além de dirigir sem qualquer remuneração, costumava ainda fazer sua despesa e por vezes também a do assistido. O Caquinho compunha aquela lista. Nego batuta! Mas agora ele me recebe do seu jeito no pequeno bar cheio da mesma cambadinha de sempre.

_ Quê que cê quer, ô?

_ Cê sabe, caramba! A cabeça de bacalhau.

Eu me referia, e ele sabia bem disso, ao número semanal de um periódico com o qual eu colaboro e que um amigo comum costuma deixar para mim ali na sexta. Às vezes coincide de eu encontrar esse amigo naquele espaço e aí a sexta dá aquela alegrada. O chamado momento mágico. Mas nesta sexta nada. Nem o dito amigo nem a dita encomenda. Mas um outro circunstante pergunta o que é cabeça de bacalhau. O caquinho responde com autoridade:

_ Cabeça de bacalhau é tudo aquilo que você sabe que existe, mas que nunca viu na vida.

Aí segue uma lista de coisas.

Ah, meu Deus! Não vou relacioná-las aqui para não suscitar melindres, mas... sabe como é boteco, né? Vai só o início da coisa:

_ Justiça social. Gritou um.

_ Segurança pública. Arriscou-se outro.

_ Moralidade na política...

_ Ih!

Monto no meu cavalo e vou para casa. Detesto confusão.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 24/02/2017
Código do texto: T5922825
Classificação de conteúdo: seguro