A matilha

Os cães de Seu Demóstenes pareciam viver na mais plena liberdade, latindo por qualquer motivo sem o risco de serem repreendidos. Corriam para lá e para cá na mais louca alegria, ladravam para os transeuntes e uivavam para a lua, feito lobos, cheiravam-se uns aos outros sem qualquer sombra de preconceito. Estavam sempre limpos e livres de parasitas, raramente se ouvia falar de enfermidades entre eles. Todas essas benesses deixavam os cães de Dona Dita com profunda inveja. O sítio de Seu Demóstenes era amplo e à frente da sede havia um largo gramado, a lagoa que se perdia por dentro da mata estava sempre repleta de patos mergulhões e garças viageiras a pescarem livremente, os cães saltavam na água fresca por entre as taboas a brincarem com esses visitantes alados. Mas o que o que os cães de Dona Dita não percebiam é que os protegidos de Seu Demóstenes também trabalhavam muito, por trás da já descrita área frontal da casa, estavam as pastagens onde os cães pastoreavam as criações diversas.

O sonho dos cães de Dona Dita era a liberdade. Ah! Como seria bom ter liberdade! Ficavam sonhando em correr livremente pelos campos. Lutarem entre si por pura diversão. Cruzarem-se sem preconceitos e sem as determinações impostas pela dona, caçarem para comer o que bem desejassem sem privações e sem dietas. Para os cães de Dona Dita, liberdade resumia-se nesta visão simplista. Pudera! Era uma pobre matilha de vira-latas, miscigenada, sem treinamento, que se formara de maneira desordenada, que apesar das cacetadas e repreensões de Dona Dita ainda não conheciam as fronteiras do pode não pode, para que pudesse, como matilha, caminhar no rumo certo para o bem da coletividade, resguardando os direitos individuais.

Com a morte da velha Dona Dita os cães conquistaram a tão sonhada liberdade. Agora eles podiam ir e vir, latir e ganir, caçar e se acasalar, dormir e brincar, vadiar da maneira como bem entendessem e, a coisa que os cães vira-latas mais gostam: se esfregar na carcaça de animais mortos ou, na falta destas, no excremento fresco das vacas, para assim manterem e propagarem a mais genuína essência da sua infeliz condição. Aquilo era a liberdade que sonharam.

Estabeleceram entre eles líderes e representantes que ajudassem a manter a ordem e o direito. Parecia que tudo ia bem, até que esses representantes começaram a se digladiar, e a formarem grupos que disputavam entre si os melhores ossos e, principalmente, as melhores posições de chefia. Era comum esses ditos líderes afanarem os ossos pertencentes a toda a matilha como se fossem somente seus e enterrá-los num sítio distante, em quantidade muito acima do que podiam consumir, enquanto boa parte da matilha passava privações. No caso de a luta ficar muito acirrada e difícil entre esses cães chefes, eles faziam conchavos formidáveis que os mantinham confortavelmente na posição conquistada à custa do sacrifício do resto da matilha. Brigavam entre si, mas se fosse em nome de explorar seus iguais cheiravam o fiofó uns dos outros. O que era mais difícil de se compreender é que haviam cães velhos, cujos dentes estavam caindo, que não conseguiam largar o osso. Estavam no tempo de viverem as alegrias da ancianidade, como a oportunidade de transmitir às novas gerações os belos conhecimentos adquiridos ao longo dos anos, confirmados por si próprios nas experiências vividas.

Enquanto uns poucos cachorros prospérrimos gozavam de suas provisões arrancadas da coletividade de forma ilícita, a cachorrada paupérrima sofria com fome, sarna, gonorreia e violência da parte dos mais fortes. Os cães mais jovens morriam aos montes na disputa por espaço, autoafirmação, e o consumo de substâncias nocivas à saúde. Cogitava-se já matar os filhotes ainda na barriga das cadelas. Tinham agora a liberdade para latir, o que era considerada pelos cães que pensavam, a expressão máxima da liberdade, mas tal manifestação em nada ajudava a matilha porque morria sem eco.

Um velho perdigueiro, semicego, dormitando nos seus trapos recordava-se de tempos de paz mais verdadeira e de prosperidade menos fictícia. Compreendia com tristeza que a amada matilha não estava pronta para a liberdade, talvez dali a muitas gerações, à custa de muito sofrimento, que este é o melhor mestre, mas entendia também que Dona Dita era mesmo muito dura.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/02/2017
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