DECEPÇÃO

“É preciso dizer a verdade apenas a quem está disposto a ouvi-la”, “Onde há fumaça há fogo” ou “O povo aumenta, mas não inventa”. Algum desses pensamentos é do Sêneca, filósofo romano, outros que o seu Manoel, o português da padaria, repete por ter ouvido por aí.

De qualquer modo, como já disse em outras crônicas, é muito difícil relatar a exata verdade, principalmente se já nos foi contada por outrem.

O Eduardo é um parceiro meu, com uma deficiência motora congênita, mas com uma inteligência privilegiada.

Um dia estava entre nós um convidado, novato no nosso grupo musical, quando chegou uma moça lindíssima, com um corpo escultural, para escutar nossas canções. Alguém cochichou no seu ouvido:

- Esta que é a namorada do Eduardo, aquela do bangalô!

Se era verdade ou não, não sei. Só sei que o cantor novato acreditou piamente! E ao mesmo tempo já se mostrou interessado pela figura, tanto que no fim da função ofereceu-se prestimosamente a dar uma carona, no seu fusca, para a jovem convidada.

No carro, conversa vai, conversa vem, o conquistador de meia tigela, disse sem muito tato:

- Como é que uma jovem tão bonita como você namora com o Eduardo?

Como eu não estava no local não sei o que a moça respondeu, nem se de fato o diálogo aconteceu. Só sei que contaram pro Edu e ele ficou furioso! As brincadeiras nossas ele aceitava e até gostava. Mas não de um estranho fazendo esse comentário sobre sua deficiência. Disse que não tinha nada com a moça.

- Mas se eu tivesse, o que ele tem com isso? Eu nasci assim, mas faço muita coisa melhor do que ele!

De fato, todos nós temos nossas deficiências. Os meus quatro graus e meio de presbiopia ninguém repara porque quase todo mundo na minha idade tem. Já a deficiência motora do Eduardo todo mundo repara porque poucos a têm. Mas pra ele e pra nós do Clube do Camelo não é nenhum defeito. Se o Edu tem algum defeito é usar esta diferença que Deus lhe deu em proveito próprio, induzindo a comiseração nas pessoas e usufruindo disso. E apenas algumas poucas vezes. Sinceramente, acho que nem isso se pode chamar de defeito. Ele está apenas se defendendo com as armas que possui.

Mas a desavença rendeu, e pela reação do Edu achamos por bem não convidar mais o desastroso conquistador, até que ele mesmo se convidou para um aniversário meu, onde iam todos os Camelos, inclusive o Eduardo. Foi um dos primeiros a chegar e todos os outros ficaram desconfiados, com receio da reação do Edu. Felizmente naquela dia aconteceu alguma coisa no Bela Manuela, lá onde o diabo perdeu as botas, e onde morava o poeta, que o Edu não pode comparecer. Foi um alívio!

Mas esta pseudo-namorada ainda rendeu boas canções como no fato que, diga-se de passagem, não presenciei:

Era Natal e o Tynnoko, nosso maestro arranjador, tinha marcado, de última hora, um show do Clube em Santarém. Não deu pra avisar a todos, mas o Eduardo, como sempre, era um dos mais interessados e já tinha marcado tudo.

- Mas no dia de Natal?

Dizia a Margarida Esposa do Edu.

- É, mas foi o Tynnoko que marcou...

Estavam nessa discussão quando Chega na redação da Voz de Nazaré, o local de trabalho dos dois, o Camelo Firmino, que era um dos que não sabia de nada. Margarida pergunta:

- Mas como é que vocês vão viajar logo no dia de Natal?

- Pra onde?

O pobre do Firmino estava inocente na questão e o Edu logo pediu que a Margarida buscasse um café, para cortar diálogo.

- Eh rapaz. Tu não sabes do show de Santarém? O que a Margarida vai pensar de mim?

- Mas eu não sabia...

Quando a Margarida chegou com o café foi desfeito o mal entendido. Não sei no que deu depois, só sei que, para felicidade geral de todos, o show foi cancelado, como o foi o de Marabá e o de Barcarena.

Quando os Camelos souberam, inventaram que o show nunca havia existido e que o Eduardo o criara para passar o fim de semana fora, num hotel de luxo com sua namorada das mil conjunções (Ver o Bangalô no RL). O próprio Eduardo levou na gozação e saiu-se com essa:

DECEPÇÃO

(Gervásio Cavalcante e Eduardo Queiroz)

Seus devaneios constantes me fazem sofrer

Pois já não sei na verdade quem sou, podem crer

Ontem deixou-me sozinho hoje, no entanto ela quer

Ternura, afeto e carinho entenda essa mulher

Do apartamento no centro fez questão de mudar

A nova casa é perfeita ela nem quis olhar

Por força o meu cigarro está querendo apagar

Arranja sempre um velório em dia de festejar

Me convidou a passar com ela um fim de semana

Na cobertura dum hotel chic em Copacabana

Tremenda decepção, não sei por que confiei

Ela não foi simplesmente e a despesa eu paguei

Tremenda decepção, não sei por que confiei

Ela não foi simplesmente toda a despesa eu paguei.

O Gervásio musicou com um ritmo lento. Os Camelos logo disseram: Tem que ser samba! Foi assim que ficou.

Verdade verdadeira? Ninguém sabe. Prefiro debitar a conta do hotel numa das versões fantasiosas...

Escutem a música em: http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/73490