Criança + 20 anos

Pelo menos há uns 20 anos, quando eu ainda era uma criança, corria desta forma: acordava cedo, ligava a televisão e assistia aos esperados – e deveras repetidos – desenhos que passavam pela manhã. Um “bombril” em uma das hastes da antena garantia a boa qualidade da imagem. Comia meu estimado pão com ovo e espreitava vultos e ruídos da minha mãe limpando a casa. Era um momento divertido, mole e airado, sem o pesar da responsabilidade.

Depois de assistir a todos os desenhos, meu pai vinha me buscar e saíamos em direção a outro município da Grande São Paulo. No caminho, lembro-me de avistar várias casas e tentar decorar as suas mais bizarras – ou refinadas – faixadas. Era comércio azul com letreiro amarelo, senhores conversando humildemente na porta de casebres, um córrego, casas do norte que exibiam chifres de boi e cachaças diversas, praças... Pessoas nas ruas, pessoas em casa com porta fechada, janelas fechadas, como que se escondendo do mundo e da vida.

Imaginava, enquanto o carro rolava, quais histórias e aventuras estariam escondidas por detrás daquelas paredes. Haviam famílias, amigos, crianças, todos vivendo histórias ali. Talvez assistindo aos seus desenhos e comendo alguma coisa enquanto as suas mães limpam a casa. Em suma, pessoas desbravando a vida, deliciando-se na aventura de viver. Solenemente.

Olhava as nuvens, e todas se pareciam com vacas, bois ou, as grandes, dragões. Quando a nuvem era muito pequena e, de fato, com nada se parecia, chamava-a, então, de Bob, e falava que era uma joaninha albina, por ser branca. Que ideia de criança.

Chegava ao outro município com meu pai, e lá, visitando constantemente vizinhos afáveis, que moravam bem alto, via, às vezes, a chuva caindo longe, muito longe. Era arrebatador para mim, uma criança imaginativa, ver aquela cortina de água espetacular, E-S-P-E-T-A-C-U-L-A-R. A decepção só vinha por que não podia ir lá e atravessá-la, sentir a divisão do seco e molhado em meu ser. Sair da chuva, entrar na chuva, sair de novo, olhar para o céu, chuva em meu rosto, descalço, roupa molhada sentindo e contemplando o frescor, envolto numa euforia de criança. Tinha minha cachoeira da cidade grande, hoje por mim avaliada como nuvens de chuva ácida.

Depois conversava com alguns coleguinhas e via meu pai trabalhar, entediava-me às vezes, mas meu pai dispunha de alguns truques na manga, para o tédio não incitar minha imaginação e esta não se traduzir em “arte de criança”.

Para fechar o relato infantil, devaneador e imaginativo de quem vos escreve, voltava para minha casa, com meu pai, querido papai, como eu o chamava. No caminho de volta, pegávamos uma rodovia, seu encostamento havia diversificada vegetação, mas o que mais me encantava eram a vegetação rasteira – muito colorida aliás – e as árvores sem folhas, seus galhos como se estivessem louvando aquele maravilhoso céu vestido de salmão, pronto para colocar o terno de gala e encher-se de brilhantes finos e gloriosos, também conhecidos como estrelas. Que ideia de criança.