Onde é que se iria arranjar mato para botar tanto índio?

Escrito em um ano que esqueci.

Um de meus irmãos, quando se refere ao site de pesquisas Google, chama-o Santo Google. Esta é uma maneira que ele achou de expressar sua admiração por esse milagre chamado internet. E ele nem é um aficionado pela rede, mas, de vez em quando, deita-se nela e rola, até onde lhe permitem seus parcos conhecimentos de Informática. Como intelectual à moda antiga, ele não tem muita paciência para gastar no exercício da caça sem perdigueiro.

Minha mãe, que nunca se aproximou de um computador, não via nada de sagrado naquela máquina. Ao contrário, se duvidar, talvez pensasse que ela tinha algo de satânico, ou, como gostava de dizer, pauta com o cão. Nos primeiros tempos de computador em casa, quando ainda não dominávamos, ou melhor, não entendíamos nem os componentes físicos da máquina nem seus softwares, e ela nos via desesperados por termos perdido um arquivo, balançava a cabeça e saía de perto, com pena de nossa angústia.

O Lauro, marido de minha prima Sylvia, ao contrário, quando ouve alguém se queixar de que o computador é uma máquina rebelde, que não obedece a ninguém, sai-se com esta: Nada disso! O computador até conversa com a gente! Faz perguntas. Nós é que não sabemos responder. Eis a questão.

Um fato tragicômico ocorreu quando eu cursava o Mestrado em Literatura. Acabara de comprar meu primeiro micro, um Itautec, e apanhava todo dia, toda hora, por pura ignorância. Fazia os últimos acertos em uma monografia de fim de disciplina, a entregar no dia seguinte – prazo limite concedido pelo professor. Dei um comando errado, e o arquivo desapareceu. Solicitei a presença de um técnico, de mais de um amigo entendido em computação... e nada. O arquivo sumira sem chance de ser encontrado. Quando todos os cães farejadores foram recolhidos ao canil, e os caçadores encerraram a temporada de caça e deixaram o bosque, desabei no choro – eram dezenove folhas digitadas, frutos de uma pesquisa demorada e difícil! E eu havia perdido tudo. Minha mãe, sentada em sua rede, com o terço na mão, acredito que pedindo a Deus que concedesse calma à filha desesperada, soltou o que, na hora, considerei uma afronta:

- E vocês ainda dizem que computador facilita a vida das pessoas. Aqui em casa em só vejo é ele trazer aperreio.

Minha mãe talvez tivesse um tantinho de razão. Meu pai dizia que possuir um carro era o mesmo que possuir uma segunda família. Tal qual um carro, computador nos dá trabalho, despesa e raiva. Como a máquina humana, carro e computador adoecem de uma hora para a outra – vão dormir saudáveis e amanhecem com as mazelas mais imprevisíveis. E lá vamos levá-los ao hospital, torcendo para que os remédios não estejam em falta. Porque, se estiverem, Deus nos acuda! Tenho uma amiga que está com o carro há dois meses em uma oficina, para recuperá-lo de uma batida. Sempre que ela vai à concessionária ou telefona, o mecânico responde que a peça ainda não chegou, que apareceu outro problema, ou lhe dá qualquer outra desculpa esfarrapada.

Mas eu, por exemplo, não saberia mais viver sem computador. Até que concordaria em ficar sem carro, mas não sem computador. Quando, nas minhas longas horas ao teclado, digitando meus textos, pergunto-me – aliás, já me fiz essa pergunta n vezes: Como se escrevia uma tese sem computador? Como se conseguia concluir um romance, ou mesmo uma novela, uma crônica, um conto, um poema em uma máquina de escrever? Lembro-me da primeira máquina que usei para meus trabalhos da faculdade – era uma engrenagem antiga e desgastada, com as teclas desreguladas, uma afronta à era tecnológica que engatinhava. Depois, quando comecei a trabalhar e a ganhar meu próprio dinheiro, comprei uma Olivetti elétrica, que já oferecia algumas inovações, além de ser movida a eletricidade – dispúnhamos de umas tirinhas de papel cobertas com uma fina camada de uma substância branca, que introduzíamos entre a tecla e o papel, exatamente no lugar onde ocorrera o erro. Pressionávamos a tecla, e a substância branca cobria o erro. Depois, era só datilografar por cima, e pronto.

Quando comprei meu primeiro computador, por intermédio de um consórcio com financiamento do Estado, achei que ele acabaria transformando-se em um elefante branco. Eu jamais me acostumaria a trabalhar naquela coisa. Nunca iria pensar, raciocinar diretamente nele. Ledo engano! Desde a primeira vez em que o enfrentei, esqueci que existe – ou existiu – algo que se chamou, um dia, rascunho. Não consigo raciocinar sem acionar o teclado. Tudo que escrevo derrama-se direto da cabeça para a memória dessa máquina infernal. Minha letra já não é a mesma. Os caixas dos Bancos já duvidam que a assinatura que consta em meus documentos seja mesmo minha. Esse artefato eletrônico, realmente, tomou conta de nossas vidas e passou a ser um companheiro que até nos subtrai da solidão.

Não quero falar dos problemas que essa máquina nos traz. Assaltantes que agem pela Internet e esvaziam nossa conta bancária? Somos roubados, também, fora da rede. E, como diz uma amiga, é melhor ser roubado na segurança (paradoxal, não?) do gabinete ou do quarto, do que correr risco de vida em um assalto ocorrido em uma agência bancária. Hackers devassam nossas vidas? A exposição é uma decorrência da tecnologia, e, diria até, uma consequência de nossa vaidade, de nosso desejo de ser conhecido. É, temos que nos acostumar com o computador, como nos acostumamos com o telefone, com o avião e com os satélites.

Atingimos um estádio tecnológico sem retorno. Não há mais como descartar uma geringonça como o computador. E nem queremos dispensá-la. Eu, pelo menos, não quero. E quando se concretizar o que já se espalha por aí – e que eu não entendo muito bem como funcionará – que os computadores não terão mais uma memória localizada no que chamamos hoje de CPU, que os dados não serão mais armazenados na estrutura física que temos em casa, mas que ficarão no espaço virtual à disposição dos internautas, Deus nos acuda! Eu não quero morrer antes de viver este espetáculo!

É! Como dizia a Altina, uma afilhada de minha avó paterna, quando ficava, frente a frente, com uma inovação tecnológica: Deus ainda não acabou o mundo com pena da inteligência dos homens! Era assim que ela, na sua religiosidade ingênua, dava vazão à sua admiração, a seu encantamento pelo novo.

Sinto muito pelos que não aceitam os artefatos da nova era. Não há mais o que fazer. Não podemos voltar no tempo e morar nas cavernas ou no mato. Nem eu iria querer isso. Como confesso a vocês, nem de mato eu gosto! Mesmo porque, como diz Rachel de Queiroz, na crônica “Ecologia”, Onde é que se iria arranjar mato para botar tanto índio?

Vicencia Jaguaribe
Enviado por Vicencia Jaguaribe em 23/01/2017
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