zazá

Uma pessoa que sempre penso é Zazá, fotógrafo da minha cidade natal, principalmente quando me olho no espelho e me vejo diferente. Ele era o único fotógrafo do lugar e por uns uns 30 anos acompanhou a vida de todos: os nascimentos, os batizados, os casamentos, as mortes. Registrava tudo que na cabeça das pessoas fosse fato importante.

Quase todos tinham uma foto tirada por Zazá, alguma ocasião importante que Zazá registrou. Hoje, lembrando bem da cara dele, um sujeito bem comum, de aparência frágil e desprovida de qualquer intensidade masculina, um tanto efeminado, de uma calma imensa e que tinha um sorriso bonito.

Naquela época o fotografo era como um médico, um dentista, um chefe de cartório, uma figura importante na cidade, que gozava de um certo prestígio, sujeito descente, um bom partido, gente de influência. Era alguém que em nossa cabeça tinha algum talento excepcional, um dom, uma graça, que se diferenciava dos outros de forma positiva pela sua arte, que somente ele sabia fazer naquelas bandas, dai sua importância na comunidade.

Naquele tempo não tínhamos tanta informação e a vida se nos apresentava mais pelo o olhar e pela palavra do outro do que pelos nossos sentidos. O fotógrafo era uma espécie de mago, que desvendava a realidade e fazia a estranha mágica de nos emoldurar num pedaço de papel, que guardaríamos para sempre e que nos serviria a cada ocasião especial (visitas de um amigo, de um parente) como prova de nossa existência. Instantes que nos alegravam, mas que segundo minha avó (num outro linguajar, claro) também era triste, porque dizia o quanto que os anos passavam e o quanto que somos indefesos a ele.

Ontem uma amiga que observei numa rede social , publicou um pouco mais de quarenta fotos no mesmo dia. No meu tempo ela seria uma milionária excêntrica, gastadeira, uma aparecida como diz um amigo das antigas.

Hoje é natural essa vertigem de fotos, pelo menos para a geração que não viu a escassez de imagens que vi na minha infância. Lembro que uma foto cada vez que era vista, era relembrada, nos causavam novas emoções, evocavam sentimentos antigos, que se misturavam ao presente e nos dava outros significados do dia que fomos fotografados. Como se percebêssemos coisas que estavam lá, mas invisível, que só a experiência dos anos nos fazia enxergar.

Era uma lembrança, mas também uma relíquia, que tinha uma força alquímica que nutria nossas saudades e nos causavam transformações interiores. A nossa relação com o tempo era pontual, cada foto era uma ilha de experiências, poucas, que de alguma forma visitávamos e nos faziam sentir diferentes da banalidade do cotidiano.

hoje nossa relação com o tempo não é mais pontual, mas tendendo a uma continuidade que é incessantemente alimentada por novas fotografias. Uma existência narrada por imagens. O tempo se tornou voraz e a imagem é a marcação de sua fome, porque a imagem de ontem não é importante, já foi digerida, não sabe ler, não informa de nós a nós mesmos. A imagem de ontem nos trairia a vaidade, revelaria que somos vulneráveis e que estamos envelhecidos, que algo mudou em nós.

Olhar a foto de todo dia, não deixa de ser um jeito de congelar o tempo, de fingir que não morro, que não perco, que existo sempre do mesmo jeito. Hoje Zazá não teria emprego. Qualquer criança hoje fotografa melhor do que ele, mas nunca terá o mérito daquele profissional, porque a massificação da fotografia deu o valor à fotografia e em certa medida, a arrancou do fotógrafo. A tecnologia deu a cada um, o "dom" que antes demorava anos de estudos para serem desenvolvidos. A mesma tecnologia mudou a nossa relação com o tempo, nos deu um presente extenso, faminto, que duvida de si mesmo e que todos os dias precisam ser provados que existem pelas imagens.

A imagem é a narração, é a comida e é também o engodo que se pensa enganar o tempo. Que pensa, que somente pensa, porque todo o tempo que se pensa congelar, já foi, e nunca mais vai voltar, como Zazá, que mesmo com um sorriso bonito, não seria mais importante.

Andrade de Campos
Enviado por Andrade de Campos em 19/01/2017
Reeditado em 16/09/2023
Código do texto: T5886767
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