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     Da pequena sacada de meu quarto, vejo a lua. Imensa, brilhando sozinha e soberana em um céu sem nuvens e sem estrelas. É o luar de agosto, e um deslumbramento misturado com saudade toma conta de mim. Foi em uma noite assim, em uma noite de luar de agosto que nasci.
     Olho a lua de agosto, que mais do que qualquer outra lua alastra-se pelos céus, em suas eternas idas e vindas, como se cumprisse uma espécie de eterno retorno dos astros. Olho a lua de agosto, que já me viu chorar e sorrir; amar e odiar; radicaFora-se o luar de agosto, recolhera-se o astro dos loucos e dlizar e transigir; oferecer-me e negar-me ... Olho o luar de agosto, que se derrama sobre mim, liquefazendo-se em mistérios. Em mistérios, sim, porque, ao contrário de Manuel Bandeira, ainda gosto da lua metaforizada e mitificada; gosto de senti-la, ainda, como um golfão de cismas, como o astro dos loucos e enamorados. Como uma criança, ainda tento nela encontrar a silhueta de São Jorge, arremessando contra o dragão.
     Os sortilégios da lua cheia são conhecidos. Verdadeiras ou não, a lua cheia produz entidades míticas assimiladas pelo povo, que as introduz no cotidiano, reverenciando umas, fugindo de algumas e pedindo proteção a outras. Entidades, negadas, sim, pela ciência e pela lógica cartesiana, mas guardadas e acalentadas na mente do povo, onde ganham vida e se perenizam. Assim, elas se fazem realidade pela força da imaginação popular.
     E é sempre à noite que entramos em conexão com essas entidades. Sempre à noite e, preferencialmente, nas noites de lua cheia.  
     Nascemos e crescemos ouvindo o urro do lobo que divide a floresta em dois mundos: de um lado, o mundo da imaginação, da fantasia, da crença no insólito; do outro lado, o mundo real, palpável, tido e havido, pela ciência, como o verdadeiro mundo.
     No mundo real, guiado pela razão e desvinculado da fantasia, da magia, da tendência para o oculto, não ouvimos o lamento do homem transformado em lobo e não escutamos o trotar da tropilha de tordilhos do negrinho do pastoreio; como também não ouvimos o sedutor canto das sereias.      
     No mundo, porém, onde impera o misterioso e o oculto, ouvimos não só o lamento do lobisomem, mas também o trotar dos tordilhos do negrinho do pastoreio e o canto sedutor das sereias. E não só ouvimos. Vemos. Vemos o misterioso: vemos os olhos de fogo de Anhangá, o protetor dos animais das matas contra inescrupulosos caçadores e pescadores; os clarões espalhados, na noite escura, pelo Boitatá; a brasa do cachimbo do Caipora, que, montado no seu porco, protege dos caçadores os animais da floresta; a nudez do pequeno e peludo Curupira, com seus pés inversos, que confunde, fazendo perder-se na floresta, as pessoas que a ele não têm devoção.

     Mais ainda, vemos o vermelho-telha das penas do Uirapuru, guerreiro que, a pedido dele próprio, Tupã transformou em pássaro cantador, para que pudesse aproximar-se de sua amada. Tinha ele a esperança de que seu canto delicado e comovente a fizesse percebê-lo.      
     E vemos mais: vemos o boto que, à meia noite — ou às horas tantas da noite —, transforma-se em gente. De roupa branca e chapéu também branco, ele aparece nas festas e, com sua elegância, seduz as jovens desavisadas, as mais bonitas que ali se encontram.  Sai com elas a passear e, antes de abrir-se a madrugada, pula na água e retoma a forma de peixe, abandonando a jovem ingênua quase sempre grávida. Por isso, além de ser conhecido como uma entidade sedutora e fecundadora, é tido como o pai das crianças cujo pai é desconhecido. Essa atribuição lhe é dada principalmente pelas mães solteiras que desejam esconder o nome do pai de seu filho ou mesmo o desconhecem.

     Quando estava nesse ponto de minhas conjecturas ou, se preferirem, de meus devaneios, dei-me conta de que a lua já estava tão alta que de minha sacada não mais podia vê-la. os enamorados. Mas até quando poderá ela, a lua, orgulhar-se dessa alcunha? Já vejo o dia em que todos concordarão com Bandeira e dirão com ele:
Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!


Fatigado de mais-valia,

Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.

 
Vicencia Jaguaribe
Enviado por Vicencia Jaguaribe em 18/01/2017
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