COBRA QUE NÃO ANDA NÃO ENGOLE SAPO: os clientes do boteco

COBRA QUE NÃO ANDA NÃO ENGOLE SAPO: os clientes do boteco

A cada aurora, energizado pela fauna e flora, somado à paz que pouca, mas ainda existe em uma pequena cidade como a minha, acordo com a sensação de que a vida vale ser vivida intensamente cada segundo, apesar das circunstâncias que nem é preciso comentar aqui sob suspeita de chamar o amigo leitor de ignorante. Não quero deixar este texto robusto, mas também não poderia deixar de citar aqui que, além da conjuntura descrita no prelúdio, a família e os sonhos são também combustíveis que alimentam nosso caminhar – mantêm- nos na trilha, num caminhar constante. Todos nós deveríamos nos orientar pelo ditado popular: “Cobra que não anda não engole sapo.”

Pelas nossas ações, desde que começamos a desbravar o mundo, tomamos para nós o título - outrora atribuído aos animais “não pensantes” – irracionais. É árdua a tarefa de entender as ações e pensamentos dos humanos, que caminham freneticamente para o fim. Como já mencionei em crônicas anteriores, moro em uma pequena cidade, pouco mais de 21 mil habitantes, o que facilita o conhecimento sobre os acontecimentos do dia a dia. Toda manhã me dirijo à padaria comprar o pão para o primeiro encontro da família. É nesse trajeto que me inspiro para traçar estas linhas. Pois bem, próximo da padaria, há um boteco que abre as portas bem cedinho, antes do cantar matinal do galo ou às vezes nem abre, por não terem sido fechadas no dia anterior.

Às vezes passo pela frente desse estabelecimento apenas para observar os clientes fiéis que parece aumentar a cada dia. Anteriormente, eram alguns idosos que maltratados pelo produto que ali é vendido, aparentam uma visionomia além da que a idade realmente deveria revelar. Atualmente, percebo que alguns jovens também já se tornaram clientes devotos do estabelecimento. Todos alheios às crises política e econômica que assolam o país, mas com muita grana para comprar o alimento que os faz felizes. Continuei minha viagem, imaginando qual o valor que cada cliente daquele gasta para comprar o alimento líquido que os mantêm em pleno gozo, mesmo estando em total estado de deterioração física, mental, financeira e social.

Os clientes assíduos do boteco em questão me fizeram, naquela manhã fresca de verão, sentido o cheiro delicioso de pão manual quentinho - privilegio apenas dos moradores das pequenas cidades – lembrar-me dos tantos outros indivíduos mergulhados no mundo das substâncias alucinogênicas que deixam de se deleitarem com os benefícios e dissabores da vida real para mergulharem no universo da felicidade e tranquilidade ilusórias. Principiei a presumir como estavam ou o que pensavam os familiares daqueles consumidores ingratos que consumiam ali mesmo o produto da compra. Segundo após, cheguei à conclusão de que eles juntos, todo dia, toda manhã, o dia inteiro, formavam uma família, outra família, que aumenta ao passar dos dias.

Ao chegar a minha casa, sentindo o cheiro forte e apetitoso do café preto e saboroso que me aguardava, comecei a imaginar por que as pessoas desistem da vida, desistem de lutar – a essência de viver - preferem os atalhos mais fáceis e estagnam no tempo. Não conhecem outra realidade, nunca acreditaram na força transformadora da educação, pois não foram acolhidos pelos bancos escolares devido a fatores que nós sabemos os quais. São cegos, mesmo podendo enxergar, são mudos, apesar de não apresentarem nenhum problema na fala e são também surdos, embora consigam ouvir perfeitamente. Estão mortos, mesmo que aparentemente ainda aja respiração.

Ainda tomando café naquela manhã tranqüila em meio às conversas do dia a dia com minha família, aqueles clientes frequentes do boteco não saiam do meu pensamento. Veio-me à mente uma frase célebre do grande escritor brasileiro João Cabral de Melo Neto que cunhou em seu livro Morte e Vida Severina: “E não há melhor resposta que o espetáculo da vida”. Ainda que tudo esteja perdido, mesmo que as coisas tenham se tornado extremamente difíceis, enquanto o coração pulsar, há uma explosão de vida e ela precisa ser vivida, já que nós somos os animais racionais, saberemos contornar as dificuldades que fazem parte do nosso viver e nutrem nosso caminhar. Fico consternado porque sei que essa crônica nunca chegará ao conhecimento dos clientes assíduos dos botecos existentes em todo o Brasil. Finalmente, terminei meu saboroso café matinal, despedi-me da família e fui trabalhar, já que concordo com o ditado: “Cobra que não anda não engole sapo.”