A febre

O pé direito desse prédio é incrível: o acabamento rústico do concreto, as calefações, tubulações e rede elétrica exposta. Me lembra em muito aquela cafeteria que fui, não fosse o café ruim que fazem aqui. E, como lá, todos os dias meus olhos deitam-se diferentes sobre minúcias que antes não me dera conta, pois é sabido que não se entra duas vezes no mesmo rio.

Antes de tudo, porque as águas já correram, as areias acumularam-se em outras pedras, os peixes já gastaram a energia das algas ingeridas para nadar sabe-se lá para onde. E depois, porque nós mesmos não permanecemos três segundos depois de o ser. O que não é sabido — nunca hão de nos deixar saber de antemão —, é que certas portas quando atravessadas não possuem caminho para trás; e vamos nós na trilha doravante que resta.

Eu, claro, não sabia que aquela Porta nos Fundos era uma dessas, e pedia mentalmente que entrássemos logo, deveras era o frio que chicoteava minhas pernas. Uma vez lá dentro, não queria mais sair; a música reverberava no posterior de meu cérebro, porque nos ouvidos só cabia tua voz. E, fosse a cadeira gelada ou teu corpo quente, até hoje não sei dizer, mas me queria bordar na tua roupa, no teu cheiro.

Era a felicidade: o salão à meia luz, a vela eletrônica na mesa, tua boca descrevendo no ar palavras que sabia que há muito não dizia. A cicatriz escondida, a vontade enorme de te cuidar se algo acometesse tua saúde que me veio engatinhando, como se se aproximando para tomar-me inteira e a emoção contida que me arrebatara. A ida ao banheiro e a troca enciumada de lugares na volta. A volta. Era só a porta do banheiro, mas na volta já não me reconhecia; era então uma versão melhor da que entrara, mais iluminada, mais segura e certamente mais feliz, que aceitou o lugar trocado de bom grado.

Deve ser por não ser mais a mesma que, ao sentar-me, a dobradura do teu braço encaixara perfeitamente à curva do meu, e teu abraço me coubera confortável. À vista, o palco à meia sombra, um violoncelista, as paredes nuas de concreto e madeira. E, mais perto, um casal compartilhava mediocremente uma garrafa de vinho. Não distingo se era o vinho indício de paixão ou o contrário: se era necessário o vinho para atinar algum calor que os faltasse.

Não soube e ainda não o sei. O que soube e ainda sei agora é que tinha calor em mim. Além do proveniente do teu corpo, que me tocava minimamente, mas mais como tocava-me a cadeira, que não tinha intenções nenhuma além que me sustentar, notei um calor crescente em minhas entranhas, febre que parecia vir a purificar as mazelas da alma.

Era a introdução do que viria a ser o grande ato. E o palco à frente não parecia mais palco que nossas próprias vidas, e nós parecíamos menos personagens que qualquer dois em cima do tablado. A cena que me interessava era aquela, destacada do resto do Universo: teu braço por sobre os ombros (os meus e os da cadeira), as veias protuberantes percebidas pela luz, tua mão cruzada com a minha.

Lorena Trevisanuto
Enviado por Lorena Trevisanuto em 12/01/2017
Reeditado em 31/01/2017
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