Saga de Matilda - Cotidiano

Mais um dia de trabalho atordoado, oh céus!

Acordo as seis e dou leite a Matilda, antes mesmo de escovar os dentes. Ela dessa vez está deitada em sua colcha vermelha, aquela que minha Bisavó costurou em uma epoca que nem era nascido. Agora sim, branqueio os dentes como se fosse uma tartaruga, uma lentidão demasiada, culpa de um sono que até os ursos me invejariam...

Minha xícara do Tricolor está descascando, um presente de meu Pai antes do falecimento. Faço um café sem açúcar, tenho evitado o doce depois que o último exame acelerou a quase morte. Pois é, minha mãe morreu de infarto aos trinte e pouquinhos, preciso me atentar a saúde, mas confesso que encho uma colher de açúcar sempre que tenho crises de ansiedade. Penteio os fios antes de ir ao banho, gosto de lavá-los sem estarem embaraçados, mas eles são soltos por natureza. Enquanto a água cai silenciosa sobre meus olhos cobertos, imagino como a vida é uma passagem curta e sem dar conta, a água que cai é uma parte da existência de tudo que nos rodeia. Tomo banho em menos de dez minutos, acostumei com os vizinhos do cortiço gritando a economia que não se importa com nosso bolso antes do fim do mês. Coloco uma roupa surrada, comprada em um brechó da sé, gosto de coisas velhas, o cheiro do mofo e os furos causados pelas traças me excitam... desejo peculiar, eu diria, mas cada juvenil com sua maluquice. Não posso esquecer de meu livreto do Machadinho, comprei em uma banca esses dias por um preço acessível.. diria até que ganhei na loteria. Claro, para quem não é apegado a literatura dirá que isso não passa de frescura, mas gosto de colecionar livretos. Se me derem uma poesia escrita em um papel de bala, irei guardá-la por toda vida. Me apego a coisas simples, assim como meu olhar sereno diante as árvores florescendo. Isso porque a primavera está de férias, mas logo as pétalas irão perfumar o esgoto a céu aberto. Me despeço de Matilda com um beijo em seu bigode, ela me olha como quem não quer passar mais uma tarde sozinha com bolinhas de jornal, mas que culpa tenho de não ter comprado a lã esse mês? É o que temos gatita, quem sabe ao voltar do trabalho, passe pela rua das palmeiras e te compre um presentinho. Fecho a porta e um barulho range os dentes, esqueci de colocar óleo de novo! Ando esquecido, perdoe-me, talvez seja as madrugas regada a poesia. Caminho e admiro as pessoas correndo, umas olhando a tela do celular ao atravessa a faixa. Me sinto feliz por ter saído de casa sem aparelhos eletrônicos, me desfiz da tecnologia há dois anos, agora escrevo em caderno e me comunico por telepatia. Tudo é um agito em São Paulo, mas penso em mudar para um casebre em Cotia, assim que vender meus móveis em um leilão falido. Chego no expediente, cumprimento meus colegas com um bafo de cigarros, tenho fumado demasiadamente... o cheiro de nicotina me recorda o passado. Escrevo algumas notas para o meu chefe que está com duas mulheres trancado na sala de reunião. Minha mente é um tanto fértil, desculpe. Começo a escrever uma poesia com erros grotescos de ortografia, imaginando a orgia naquela sala que se falasse me contaria os detalhes por baixo da cadeira vazia. Mas paro, preciso me concentrar no trabalho e adiantar umas atividades da faculdade. Tenho estudado economia, nada haver com quem gosta de literatura e poesia. Meu mundo está de cabeça para baixo com relação ao meu futuro profissional, acho que vou largar os contos e me dedicar aos números fielmente. Que lástima, chegou a hora do almoço e estou devaneando. Vou almoçar em um carrinho de cachorro quente, esqueci a marmita na geladeira, isso que dá beijar felinos antes de atentar-se as tarefas domésticas. Como três cachorros com gosto e decido ir tomar um sol na biblioteca. Gosto de bibliotecas, me sinto em casa. Está quase na hora de voltar ao trabalho, mas dessa vez direi ao chefe que a gastrite atacou e vou correndo até a palmeiras comprar lãs vermelha. Matilda me espera, acho que esqueci de colocar o leite em seu pote fresco, coitada.... apresso o passo correndo até em casa, tudo por amor... nunca amei tanto meus bichos, acho que os humanos deveriam amar quatro patas ao invés de se atracarem em locais público. Chego em casa e lá está ela, deitada sem se atrever a vir me saudar, claro, são apenas quatro e chego normalmente as oito. Coloco meus discos do Tim Maia, quero me afogar em lágrimas e depois de umas mentirinhas, gritar como sou um fracassado. Jogo as lãs em sua cara e danço pela casa. Somos assim, nós dois e a música por um tempo que eu não sei se pretendo juntar novamente as escovas de dentes.

PazSarinha
Enviado por PazSarinha em 23/06/2017
Reeditado em 10/08/2017
Código do texto: T6035437
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