O Vôo

No litoral, meu tempo mais bem apreciado é quando eu caminho na beira da praia vendo as ondas tentando me pegar com sua espuma e seu movimento hipnotizante. Sinto-me como se fosse uma criança brincando um jogo onde eu avanço destemidamente para dentro da areia empapada até que uma onda venha me desafiar e a tentar me infligir uma derrota ao me molhar. Neste jogo de avança e recua, eu caminho quilômetros esquecendo-me do mundo e dos problemas, apenas focado em vencer pequenas batalhas aqui e ali. Às vezes, deixo o inimigo sentir um gostinho de vitória, mas por tempo apenas limitado para não dar a impressão que venço sempre, mas sei que é uma guerra perdida porque o mar sempre me vence e acabo, invariavelmente, caindo na água para saborear todos os prazeres que o oceano oferece e me revitalizar para o próximo dia.

Quando existem dunas próximas, eu corro nelas, deixo-me rolar até a base para subir novamente e repetir o jogo. Ou, então, simplesmente ficar com os braços e pernas abertas absorvendo as suaves sensações que os minúsculos grãos de areia me causam ao serem levados pelo vento, pelo calor do Sol e pelo ruído próximo das ondas que me aguardam para mais uma batalha. Sim, porque, após lutar contra a areia, eu preciso de uma purificação que somente o mar sabe me dar, como se as ondas soubessem que estão para ganhar mais uma luta...

Ocasionalmente, como hoje, eu me comporto mais seriamente porque levo minha câmera comigo e deixo a minha imaginação ver pequenas coisas tais como uma concha laranja parcialmente enterrada na areia ou um grande cenário como o magnífico por do Sol que se aproxima, com a dose certa de nuvens no céu e estrategicamente se situando para dar aquele espetáculo através do Sol. Atrás das dunas, onde estou agora, sempre existe um lugarzinho especial para obter silhuetas multicoloridas. Posso não obter belas fotos, mas a diversão é garantida!

Do nada, à minha direita, vi uma mulher parada a meio caminho entre as dunas e as ondas, igualmente observando o horizonte que eu pretendo fotografar. Não havia visto ninguém por perto; de onde teria saído ela? Talvez ela também estivesse brincando nas dunas?
Tiro algumas fotos dela, enquanto ela olhava para ambos os lados e, não vendo ninguém, tirou toda a roupa e colocou uma larga túnica branca alcançando quase seus pés. Com gestos lentos, abriu os braços e pernas formando uma estrela de cinco pontas, posicionando-se bem na direção do Sol.

Ela permaneceu assim por alguns minutos enquanto eu a observava sorrateiramente e, ocasionalmente, tirava uma foto. Talvez por estar fixamente olhando para ela, meus olhos começaram a ter visões ou, pelo menos, foi o que pensei quando me pareceu que do corpo dela estava emanando uma luz clara e discreta. Talvez fosse o reflexo da luz na túnica branca, não sei. Só sei que tudo ficou mais confuso ainda quando ela, lentamente, começou a se erguer do chão!... Ela estava levitando, apenas alguns centímetros, mas levitando! Esfreguei os olhos; não podia acreditar! Tirei várias fotos para testemunhar o impossível. Quando estava a meio metro do chão, começou a girar lentamente, os olhos fechados. Então, na total impossibilidade física, ela fez movimentos circulares voando entre a água e as dunas!

Aquilo simplesmente não tinha explicação e, entre maravilhado e intrigado ao mesmo tempo, na tentativa de obter um melhor ângulo para as fotos, acabei rolando duna abaixo, enchendo meus olhos e a boca de areia. Ajoelhado na areia, enquanto tentava me recuperar, ouvi uma voz perto de mim:

- Vem comigo? - Ali estava ela, bem à minha frente, flutuando a meio metro do chão, seu corpo graciosamente emanando uma discreta luz branco-amarelada que parecia ter sido roubada do Sol. Estendeu-me seu braço, oferecendo a mão luminosa. Não me critiquem por ter ficado alguns momentos indecisos em aceitar o convite, mas quem não estaria? Afinal, não é todo dia que se vê alguém voando por aí sem ajuda de aparelhos e, ainda por cima, convidando você para voar junto!...

Quando toquei a mão dela, senti imediatamente uma sensação de preenchimento de uma energia similar a um choque elétrico agradável (passou-me pela mente que esta energia poderia danificar minha câmera que não largo nunca). A expectativa do que estava por vir era grande e a pequena sensação de medo que tinha desapareceu por completo conforme eu ia me sentindo mais leve e a minha visão se ampliava para novas cores, luzes e coisas que antes não conseguia ver. Ao meu redor, as sombras tornaram-se mais escuras e a luz tornou-se mais vibrante. As dunas estavam carregadas de sombras, mas pontilhadas por pequenas luzes que pareciam se movimentar ao sabor do vento formando uma espécie de rio fluídico que serpenteava para baixo. Alguns destes "rios de energia" pareciam procurar o calor do lugar onde eu estava até poucos momentos atrás. Seria por isto, então, que temos aquela sensação de paz e alegria ao deitar numa duna?

A vegetação emanava uma luz verde brilhante onde havia vida, mas ficava mais escura nos galhos e ramos mortos ou em processo de morte. Enquanto subíamos, toquei nas folhas brilhantes de um arbusto e sua energia mesclou-se com a minha, deixando uma pequena marca luminosa na ponta dos meus dedos e nas folhas que toquei. Eu já sabia que as florestas eram repositórios de energia, mas agora estava vendo como elas beneficiam os seres vivos e também se "alegram" por este contacto. Pude ver que algumas árvores eram mais claras e outras mais escuras, e imaginei que as mais claras eram mais "amigas". Também vi algumas tombadas, sem a energia das vivas, embora evidenciassem outras cores, como se os materiais em transformação produzissem emanações mais ou menos agradáveis.

Surpreendi-me pensando nestas coisas e olhei para a mulher. Ela sorriu levemente e fez um discreto sinal de concordância para mim. Ela lia meus pensamentos, ou então, estava induzindo idéias para que eu entendesse o que estava se passando.

Flutuamos sobre a água, a poucos metros dela. Não tenho palavras para descrever a beleza do que estava vendo! A água era transparente e via os peixes movimentando-se para lá e para cá; alguns deles possuíam mais luz, outros menos. Milhares de pontos coloridos movimentavam-se ao sabor das correntes da água. Como um todo, a água resplandecia com uma luz tênue e agradável. Entendendo meus pensamentos, a mulher nos deixou baixar graciosamente até nossos pés tocarem a água e, imediatamente, nossas luzes se misturaram e senti uma vibração mais forte, tal como um choque de maior voltagem, mas absolutamente reconfortante e calmante. Agora entendia porque o mar é um lugar para recuperar energias!

Então, nos voltamos para o por do Sol... As palavras me faltam para descrever o que vi. Majestoso? Imponente? Maravilhoso? A energia e a luz que vinha de lá, carregada de tons dourados, laranja e vermelho, atingiam-me diretamente enchendo-me de calor e vibrações que não sei descrever, a tal ponto que comecei a ficar tonto. Imaginei-me uma bateria prestes a explodir de tanta carga e senti que minha leveza começava a desaparecer, meu corpo se tornava pesado e o chão ficava mais próximo. Mentalmente, ela me pediu para fechar os olhos e foi me levando. Um torpor estava me tomando, como se estivesse desmaiando. A última coisa da qual me lembro é a mulher deixando-me de volta nas dunas...

Quando acordei, já era noite e eu sentia frio deitado na areia. Não haviam mais luzes e o céu parecia coberto de nuvens. Ouvia o constante barulho das ondas me provocando, mas eu não estava mais com vontade para jogar. Não sentia dores, apenas frio. Tinha uma sensação de alegria, leveza, sem saber de onde vinha, sem saber de onde ela viria.

Caminhei até o mar e segui a linha das ondas para voltar à pequena cidade onde estava parando, cujas fracas luzes apareciam distantes, enquanto refletia sobre tudo o que me acontecera. Era impossível acreditar naquilo tudo; será que dormi na areia e sonhei aquele sonho maravilhoso? Sonho ou não, lembro-me de ter tirado muitas fotos e estas poderiam elucidar o que me aconteceu.

Ansioso, baixei as fotos no meu computador e - suprema decepção! - fotos e mais fotos apresentando apenas um borrão sem possibilidade de qualquer identificação! Nem as fotos iniciais da mulher na praia estavam lá! Uma após outra, conforme eram baixadas, o mesmo borrão. Centenas delas! Devo ter pegado no sono e, no sonho, eu apertava o obturador da câmera que fotografava apenas algo próximo demais para sair nítido. Fiquei tão desapontado que nem quis mais olhá-las e as ignorei de todo.

Desta experiência - ou deste sonho - passei a observar a Natureza com outros olhos e entender melhor o nosso relacionamento com ela. Passei a estar mais próximo dela e menos com a tecnologia que nos cerca inexoravelmente hoje. Tentei propagar idéias de proteção à Natureza, mas o que percebi é que as conveniências do dia a dia de cada um impedem que enxerguemos aquilo que sempre esteve à nossa frente e que esta maravilha esteja em processo de degradação e destruição pela mão do Homem. Passei a investigar o assunto e percebi que algumas pessoas conseguem "enxergar" mais ou menos o que eu senti, embora jamais eu tivesse tido a coragem de contar a alguém o que se passou comigo.

Muitas vezes voltei àquela praia sem jamais ver sinal daquela mulher. Até ensaiei repetir o mesmo ritual dela. O máximo que consegui foi cair no chão imaginando que estava voando...

Alguns anos depois daquele "vôo", eu precisei trocar de computador e fiz uma limpeza para verificar o que era importante e descartar o restante. Acabei olhando de novo aquelas fotos. Todas estavam lá, borradas, às centenas. Quando ia apagá-las, notei a última, diferente...

Julguem-na vocês mesmos!...


 
CBressan
Enviado por CBressan em 19/06/2017
Reeditado em 19/06/2017
Código do texto: T6031182
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