Nada é por acaso

Estava exausta e àquela semana em especial não havia sido uma das melhores, sentia uma dor terrível no estômago, era possível que fosse decorrente da minha gastrite. Era uma mistura de desespero e esperança de que tudo melhoraria em breve. Eu tinha apenas vinte anos e às vezes tinha a impressão que carregava o mundo nas costas, porém certos sacrifícios são necessários para plantar frutos e sobreviver ao sistema. Eu tentava buscar sempre por um incentivo para não desanimar e não enlouquecer perante tudo. Deitei-me na cama e não demorou muito até que pegasse no sono.

Naquela noite, eu passei por muitos lugares, vivi amores perfeitos, encontrei pessoas, realizei sonhos, fugi de monstros, enfim, enfrentei diferentes criações do meu subconsciente até parar naquela casa onde jamais pensei que pudesse ter uma segunda chance de visita-la. Ela estava intacta apenas em minha memória, pois já havia sido desmoronada há muito tempo. Eu estava no quintal o qual era como me recordava das fotos: o piso antigo em forma de mosaico laranja-amarronzado, as flores plantadas no canteiro e as escadas que davam até a entrada principal. Não me recordo do interior da casa, mas imagino o quanto devo ter aproveitado cada cômodo.

Foi quando eu a vi saindo pela porta em direção a um dos canteiros no quintal. Com o sorriso no rosto e a impressão de quem estava tramando alguma arte.

— Christina, cuidado com a escada! Não é para correr! – gritou minha mãe de dentro da casa.

Era o mesmo cabelo chanel, louro e a roupinha da foto que estava no meu mural: um camisetinha branca e a bermuda rosa. Ela podia me ver e assustou-se com a minha presença. A emoção tomou conta quando vi a mim mesma ali com apenas três anos de idade. Desconfiada, a menina não sabia se devia continuar com aquela ideia que tinha planejado de arrancar uma das flores que cresciam no canteiro ou se deveria voltar correndo para dentro de casa. Ela me encarava com os olhos sérios.

Fiquei confusa, era como se eu tivesse voltado para o passado. Diferente dos sonhos anteriores, agora eu estava consciente e tinha controle dos meus pensamentos e movimentos. Com o receio de ser acordada, não quis perder tempo e poderia tentar entender aquilo depois.

— Pode pegar, não tem problema. – disse a ela.

Mas ela preferiu não arriscar. Aproximei-me e agachei-me perto dela.

A pequena Chris continuava me encarando, desconfiada até que se virou e ia subir as escadas.

—Ei, aonde vai?

— Mamãe.

— Espere. Antes de ir, preciso lhe dizer algo.

Eu olhei no fundo de seus olhos e disse:

— Desculpe-me por todo o sofrimento que nos fiz passar. Se eu pudesse, teria evitado muita coisa, mas, enfim, esqueça. Venha, vou ajuda-la.

A menina, sem entender o que aquilo tudo poderia significar, apenas me deu a mão e entrou na casa. Após algum tempo, minha avó saiu no quintal me segurando no colo tentando me distrair com os passarinhos que vinham se alimentar da fruta que meu avô havia deixado sob o muro pela manhã, mas ela não me via. Emocionei-me mais uma vez, pois vinha avó havia falecido há dois anos. Acomodei-me no banco do jardim e continuei observando-as por um tempo.

— Você sabe por que passou por tanta coisa, não é? — disse uma voz, de repente.

Naquele instante, um senhor de cabelos brancos e de olhos escuros apareceu sentado ao meu lado; ele vestia camisa e calça branca e também observava minha avó e a pequena Chris em seu colo que se divertia com o “João de barro” sob o muro.

— Meu Deus, quem é você?! De onde surgiu?! — perguntei, espantada.

— É um prazer conhece-la, Christina, finalmente. Quer dizer, pessoalmente. — respondeu ele, abrindo um leve sozinho. — Meu nome é Benjamin, sou seu mentor espiritual.

— Oi? Meu mentor? Isso seria o mesmo que meu Anjo da Guarda?

— Ora, agradeço o elogio, mas são papéis diferentes. O Anjo da Guarda é considerado um espírito protetor que pertence a uma escala elevada no plano espiritual e por isso nunca encarnaram ou reencarnarão. Já os Mentores Espirituais são espíritos que atingiram um estágio pouco acima das almas terrenas, mas apesar de sermos imperfeitos ainda, estamos sempre por aqui para ajudar nesta trajetória de vida, nesta atual reencarnação. Escolhemos auxiliar como forma de também evoluir espiritualmente.

Eu ainda não entendia muito sobre a Doutrina Espírita, mas já há alguns anos que vinha passando por experiências mediúnicas como encontrar e conversar com entes familiares já falecidos em sonhos, sentir a energização dos ambientes, ter algumas premonições ou mesmo sentir a presença de bons ou maus espíritos. Eu estava disposta a entender mais sobre como tudo funcionava, pois até então nunca havia me identificado com qualquer outra religião.

— Desculpe a ignorância, mas isso tudo ainda é novo para mim. E eu achei que não pudéssemos ver nossos mentores.

— De fato. Realmente é um privilégio porque não é qualquer um que têm essa chance.

— Então imagino que esteja envolvido nisso. Quer dizer, a razão de estarmos aqui.

— É claro, eu sei o quanto sua infância significou para você. Esperava que se orgulhasse da mulher que se tornou apesar de ainda possuir essa criança dentro de você.

Eu sorri timidamente.

— O que quer dizer?

— Bem, você não deixa de acreditar que tudo vai dar certo mesmo quando as coisas se complicam, gosta de viver aventuras e deixar a imaginação fluir. Seu maior desejo seria poder ser privilegiada com superpoderes e salvar o mundo, mas embora isso não seja possível, você faz o que está ao seu alcance para se sentir uma heroína no mundo real. Sei como se sente realizada quando faz algum tipo de doação ou mesmo quando lhe pedem ajuda. Enfim, o que quero dizer é que não teria superado tanto, se essa essência tivesse se perdido.

— Nossa, parece que você sabe mais sobre mim do que eu mesma.

— Nos conhecemos antes mesmo dos seus pais planejarem a sua vinda para a Terra então não é a toa que eu sei tudo sobre você, mas não é sobre isso que viemos falar. Tudo será esclarecido no seu tempo.

— Você tem razão. Então, porque escolheu esse lugar?

— Me diga você. Não fui eu quem nos trouxe aqui, eu apenas arquitetei para que fosse levada a algum lugar que a ajudasse a refletir sobre isso, você nos guiou até aqui sozinha, em pensamento.

— Nós voltamos para o passado?

— Não, não podemos fazer isso, pois não está só relacionado às leis da física, mas também as leis divinas: Se influenciarmos o espaço-tempo nós criaríamos uma linha alternativa e isso geraria consequências catastróficas como o “efeito borboleta”. Nesse caso, é um evento único e especial. Apenas você mesma pode se ver... Como se fosse um espelho.

— Então estamos dentro de uma lembrança?

— É a reconstrução de uma lembrança. Por isso você é capaz de conversar e tocá-la. Nossa memória é algo fascinante, Chris. Nós vivemos e passamos por muita coisa, não é a toa que o cérebro descarta boa parte dos nossos registros. Imagine que loucura seria?

— Porque tenho essa sensação de que a qualquer momento posso fazê-la a não cometer certos erros e livrá-la de sofrimentos futuros? — perguntei referindo-me à criança.

— Alivie essa agonia e me diga o que gostaria de dizer a ela.

— Eu não sei bem... Não é o tipo de coisa você imagina que aconteça. Quer dizer, encontrar a si mesma enquanto criança sabendo de todas as coisas que já passou na vida.

— Vamos lá, Chris. Você é boa nisso. Busque em seu interior e apenas diga. Aproveite a oportunidade.

—Bem, eu apenas diria para ela aproveitar cada minuto da infância, para ela abraçar seus pais, avós, tios e dizer o quanto os amam.

Benjamin olhou para mim esperando que eu continuasse. Respirei fundo e retomei os pensamentos dizendo o que vinha do fundo do meu coração:

— Diria para ela ser forte porque um dia a magia acaba e precisamos aceitar a nova realidade; diria para que ela não mude por ninguém, a não ser que seja por ela mesma; diria para não dar importância às criticas porque elas sempre irão existir não importa o que você faça; diria para nunca desistir de seus sonhos e manter o pensamento sempre positivo para que eles não se distanciem, basta acreditar e ter fé que tudo dará certo; diria para não ser tão inocente e criar expectativas esperando dos outros o mesmo que faz por eles; . Diria para se precaver com os “sapos” que aparecem pelo caminho, pois diferente das histórias, eles não se tornam príncipes; diria para ela se amar antes de tudo e acreditar em si mesma, pois ela não precisa que ninguém faça isso por ela; diria para não se preocupar tanto com as notas do boletim, pois não é isso que vai mostrar se somos capazes ou não e... Porque está me olhando com essa cara?

Benjamin sorria para mim, ele parecia estar bastante concentrado no que eu dizia.

— Você percebe que só sabe disso tudo agora porque um dia enfrentou cada uma dessas situações? Se essa menina fosse seguir todos esses conselhos e seguisse esses “atalhos” certamente não estaríamos aqui agora. A vida deve ser uma montanha russa, Chris. Dependemos dos momentos ruins para alcançarmos os degraus mais altos.

— É, acho que tem razão.

— Nada é por acaso. — afirmou ele. — Se pudéssemos voltar no tempo, eu não gostaria que tentasse evitar todos esses erros.

— Eu não tentaria evitá-los; eu acho que os cometeria de novo e viveria mais uma vez vários desses momentos. Eu não me culpo por ter tomado decisões que me fizeram sofrer, me culpo por não ter aproveitado cada minuto como se fosse único. Mas a gente não costuma pensar muito sobre o dia de amanhã quando somos jovens, você sabe. Planejar o futuro faz parte da vida adulta.

— Sim, tem razão, mas chega uma hora em que todos lamentam quando percebem que o passado lhes traziam muitas alegrias e quase nenhuma preocupação. Isso é natural, a questão é saber como lidar com isso e seguir em frente.

— Talvez por isso meu pensamento tenha me guiado até aqui. Achei que estivesse resolvida com o meu passado, mas ainda é uma ferida que não cicatriza.

— Alguém está querendo te testar, mas nem todos tem uma oportunidade como esta e você está se saindo muito bem.

— Como sabe?

— Bem, você deixou sua armadura de lado e abriu seu coração. Isso já é meio caminho andado. A vida não vem com um manual, Cris. Não sabemos o que fazer até que as coisas aconteçam. Não deve se arrepender de seus erros porque naquele momento você fez o que acreditava ser o certo. Deus ainda tem muitos planos para você. Se nós estamos aqui é porque fez por merecer. As coisas vão melhorar a partir daqui.

— Fico feliz em saber disso, Benjamin e conto com você para continuar a minha caminhada. — sorri timidamente.

— Não se preocupe, ainda vou cuidar de você durante muito tempo. — disse Benjamin colocando a mão sob meu ombro. — Eu também aprendi muito com você, Cris.

— E eu vou me lembrar de tudo isso?

— Claro, não faria sentido se não lembrasse.

— Obrigada, foi ótimo conhecer meu mentor espiritual. Sinto-me segura por saber que está sempre por perto.

Nós nos levantamos e eu o abracei.

— Apenas você pode me afastar.

— E por que eu faria isso?

— Digamos que não teríamos mais a mesma “sintonização”. Caso você volte a ser assombrada pelo passado, a dar abertura aos acontecimentos e aos sentimentos angustiantes, irão se aproximar àqueles que se afinizam com o grau vibratório do médium, os obsessores.

— Obsessores? — perguntei assustada com o termo.

Benjamin sorriu percebendo minha inocência.

— Não se preocupe porque anos atrás mesmo inconsciente você afastou seus obsessores e me trouxe para próximo novamente. Enfrentou seus maiores medos e passou a encarar a vida de outra forma. Você evoluiu muito.

— Pelo visto há muito que aprender.

— Sua missão está apenas começando. — sorriu ele. — Você é especial, não deixe com que te façam acreditar no contrário. Você deve acordar em poucos minutos, já amanheceu. Até a próxima, Chris. Fique com Deus.

— Até logo, Benjamin e obrigada, por tudo.

Benjamin então andou em direção à porta da casa e desapareceu.

Eu ainda observei a pequena Chris e minha avó no jardim por um tempo. Minha avó regava as flores do canteiro enquanto eu andava em um pequeno triciclo rosa de rodas amarelas. Logo em seguida minha mãe apareceu e me pegou no colo dizendo que estava na hora do almoço. Antes de entrar, ela acenou para mim despedindo-se.

Benjamin estava certo, aquela essência ainda permanecia. Era algo intrínseco que vinha do interior da minha alma, não foi algo que adquirira a partir da criação que meus pais me deram, não saberia como explicar, porém certamente eu estava destinada a cumprir certas tarefas.

Antes de ir, minha avó sorriu para mim o que foi estranho, pois julguei que somente a Chris em versão miniatura poderia me ver. Ela sorriu como se estivesse orgulhosa pela minha “aprovação” no teste.

“Sinto sua falta, vó” — disse a ela em pensamento retribuindo o sorriso.

De repente, tudo ficou escuro, mas não fiquei com medo. Senti que estava na hora de contar a Benjamin como havia me sentido durante aquela experiência singular. Fechei os olhos e em pensamento, me imaginei escrevendo uma carta para o meu mentor espiritual para que pudesse lhe descrever da melhor forma como fora a minha reflexão a respeito de tudo o que havíamos conversado.

“Caro Benjamin,

Acredito que algum dia, eu ainda irei entender a razão de tudo isso...

O espiritismo tem me ajudado a enxergar que todos têm um propósito nesta vida. Cada reencarnação opera como se fossem cada ano que passamos na escola. Em cada um deles aprendemos disciplinas diferentes; às vezes somos reprovados em algumas delas, porém recebemos uma nova chance para fazer uma recuperação. Esta Doutrina é tão íntegra que levarei mais de uma reencarnação para entender toda sua complexidade, mas lhe agradeço desde já por ter me mostrado o caminho.

Bem, eu tinha lhe dito que chega um momento que precisamos aceitar uma nova realidade, no entanto percebi que não se tratava disso, eu apenas não conseguia aceitar o tempo atuando sobre nós. Eu me acostumei a pensar que não temos tempo suficiente para fazer tudo o que queremos, mas nós devemos nos planejar e resolver nossas pendências antes que o dia acabe, antes que a vida passe diante os nossos olhos e não façamos nada. A vida é muito curta, Benjamin, e por isso decidi que não poderia mais me apegar ao passado, deveria me preocupar com o presente e aprender com as minhas falhas.

Agora eu consigo entender porque o homem ainda não foi capaz de criar uma tecnologia que nos enviasse de volta para o passado uma vez que não se pode alterar a linha temporal que já fora traçada. Isso explicaria também a razão de não nos lembrarmos de nossas outras reencarnações já que o que nos importa agora são o presente e o que aprendemos com as experiências desta vida. O que eu quero dizer é que eu não acredito em destino, não acho que seja Deus quem controle nosso futuro. Pois devido ao nosso livre-arbítrio, nós temos a liberdade de fazer as nossas escolhas e trilhar nosso próprio caminho, mas não podemos nos esquecer da lei de ação-reação que move o universo. Não existem castigos ou punições vindos do além, há apenas justiça.

Eu entendi que os rancores, mágoas, angústias e arrependimentos não nos leva a nada, a não ser para um poço sem fundo. Sentir saudades do passado é natural e precisamos disso muitas vezes para ser incentivados a realizar coisas no presente, mas remoer fatos que poderiam ter ou não acontecido também não é a saída para uma alma desesperada.

Enfim, sem dúvidas esta não será a primeira e nem a última carta que lhe escreverei porque há muito para me ensinar e eu para aprender. Afinal, esse é só o começo, não é?”

E antes mesmo que pudesse chegar ao fim e assinar o meu nome, finalmente abri os olhos. Era como se tivesse acordado de um sono muito profundo e eterno e pelo modo que encontrei minha mãe, dormindo ao meu lado, talvez fosse exatamente isso que tivesse acontecido. Embora me esforçasse, eu apenas conseguia me lembrar do encontro que havido tido com Benjamin e enquanto tentava entender onde estava, com um tom esperançoso na voz, ouvi alguém dizer ao fundo:

— Doutor, ela acordou.

Giulianna Loffredo
Enviado por Giulianna Loffredo em 23/04/2017
Reeditado em 03/10/2017
Código do texto: T5978610
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