OUTROS PALHAÇOS

Antônio tinha oitenta anos e sabia que perdia a memória. Perdia a memória, mas o fato nem o incomodava. Antônio aos oitenta anos sem memória, achava que nos últimos meses recebera a visita do pai morto há cinquenta anos, da esposa falecida há vinte e até o filho. Pareceu-lhe que conversara com o menino ontem, embora a criança tivesse morrido há mais de trinta anos de leucemia. Antônio perdia a boa memória e não se incomodava porque a má memória trazia outras lembranças. Infelizmente, porém, a má memória tornou-se efetivamente má.

Antônio começou a se preocupar com palhaços: o seu medo infantil de palhaços. Dizia que eles não eram somente figuras amistosas e começou a encontrá-los em sonhos tão nítidos que pareciam reais. Ele percorria ruas inundadas por chuvas de verão, caminhava até uma grande tenda de circo e encontrava os tais palhaços que ali moravam e transpiravam.

A sua filha mais velha não ligava para o pai. Tentava acalmá-lo. Pedia que ele não se preocupasse. Tudo ficaria bem, eram apenas efeitos dos remédios. Às vezes, a filha ia mais longe no sermão e afirmava ao pai que o tempo real é absoluto. Não acontecera nada; nem a visita do seu avô, nem o retorno da mãe, do irmão... porque eles estavam mortos e ele, Antônio, tinha oitenta anos. Também não existiam uma tenda de circo, palhaços e outras ideias. Tudo ficaria bem, eram apenas efeitos daquela internação provisória por recomendação médica.

Antônio até aceitava os argumentos. Todos estavam mortos, mas os palhaços eram seres diferentes. Os palhaços pareciam existir. Existiam.

Ontem palhaços chegaram no picadeiro com as suas calças balões e gritaram:

- Bom dia, criançada!

As crianças responderam:

- Bom diiiiiia!!!!

E os palhaços perguntaram:

- Quem tem medo de perder o amor da mãe?!

E as crianças responderam:

- Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!!!!!!

E os palhaços repetiram:

- Quem tem medo do ridículo?!

E as crianças responderam:

- Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!!!!!!

E os palhaços insistiram:

- Quem tem medo de morrer?!

E as crianças devolveram:

- Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!!!!!

E os Joões Bobos definiram:

- Quem tem medo de virar velho pobre?!

Nesta última questão somente Antônio dissera “Eeeeeeeu!”. Era uma questão importante. Que palhaços mal-intencionados estes a inquirir de forma tão cruel.

Ontem Antônio acordou sem saber porque estava ali, naquela casa de repouso. Depois se lembrou. Tudo estava bem. A idade madura parecia ter este sentido: estar bem. Uma enfermeira chegou a avisar-lhe. Era sábado de carnaval. Antônio então parou de temer os palhaços e explicou:

- Enfermeira...vou sair um pouco. Hoje não verei os palhaços. Eles se escondem no carnaval. Não podem assustar velhos deslumbrados em um sábado de carnaval.

Mas foi exatamente hoje, já domingo de carnaval, que Antônio morreu de infarto no meio da avenida. Havia palhaços por todos os lados.

“Palhaço pra todo lado” era o nome do bloco.

phcfontenelle@gmail.com

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 23/03/2017
Reeditado em 18/03/2023
Código do texto: T5949770
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