GENERAL ASTOLFO

Era um domingo, feriado ou dia santo. Não sei bem que diabo de dia era aquele. Só me lembro que era dia de festa na casa de “General”.

Astolfo era um cara que, desde pequenino, era chamado de “General” pela família, amigos, vizinhos, colegas e os cambaus. Isso porque o pai, um cabo velho, músico do Exército, servia no Regimento General Astolfo e esse era, justamente, o nome de um militar valoroso, o general Antônio Astolfo, seu comandante na Batalha do Jalapão, em 1864.

Pelas campanhas bem sucedidas, à frente dessa tropa combatente, o general Astolfo foi elevado à honrosa posição de Patrono do Regimento. Por essas e outras importantes campanhas, o Regimento era considerado como uma das mais destacadas Unidades Militares do país. Era sediado no Rio de Janeiro, no bairro D.Dinis das Astúrias de Bragança, um subúrbio da antiga Estrada de Ferro Leopoldina Railway, pra lá de Braz de Pina.

Assim, o cabo Campos, imaginava o filho envergando uma farda camuflada, desfilando à frente da tropa, cheio de garbo, recebendo os aplausos do público na Avenida Presidente Vargas, nas festividades do Sete de Setembro.

Patriota até a raiz dos cabelos, o cabo Campos, ainda ficava arrepiado quando, na Banda de Música, tocava o seu trombone cuidando da correção da melodia decorada. Garboso, coturnos brilhando, trombone afinado, lá ia ele na passada cadenciada, arrancando as notas precisas para a melodia perfeita.

O trombone do cabo Campos tinha uma sonoridade peculiar e ninguém tocava como ele. A banda era composta por músicos experientes e o comandante do Regimento fazia o maior empenho em utilizá-la como agente de “relações públicas”, fazendo questão de que fosse representar a unidade em todas as quermesses, procissões, formaturas escolares e, até nas retretas dominicais, no velho coreto perto da estação ferroviária.

Apesar de todo esse envolvimento com as coisas da pátria, o cabo Campos, nem sempre estava de bom grado nessas empreitadas que o comandante arranjava para a banda. Achava um saco aquele negócio de ficar em forma, em baixo do sol quente, tocando em quermesses, formaturas, procissões de um mundaréu de santos, etc, etc...

Florita, a mulher, reclamava da dificuldade de ter o marido em casa nos finais de semana, feriados e dias santificados. Com um barrigão sem tamanho estava acabando de engendrar o primeiro e único filho do casal, depois de vários anos de tentativas sem sucesso. Já próximo do nascimento, o moleque parecia um jogador de futebol ou um ciclista, pedalando sem parar... A mulher já estava incomodada de tanto levar chutes que lhe vinham de dentro da própria barriga.

Um dia, ao tirar um pedaço de lombo de porco que assava no forno, o menino deu-lhe tamanho chute por dentro do umbigo que o dito cujo estufou e ficou quase do tamanho de um limão galego. No susto, não deu outra! Levou uma bela queimadura nas costas da mão direita que resultou num seu primeiro impropério: Garoto mais filho da puta! Vai dar chutes na barriga da puta que o pariu! Imediatamente, porém, arrependida da ofensa àquela inocente criatura, pediu perdão a Deus, a todos os santos e aos anjos que cuidavam das crianças os quais, com certeza, deviam ter sido testemunhas do seu destempero.

O menino nasceu e, como filho único, era paparicado por toda a mulherada da família e, de quebra, por um tio que era meio pródigo em trejeitos e reviradas de olhos, proprietário de uma voz que não cabia muito bem em sujeito macho, de boa cepa.

Na pia batismal da capela do quartel, o filho do cabo Campos recebera, na língua, uma bela pitada de sal junto a uns respingos de água benta e o nome cristão de José dos Anjos de Campos Astolfo. Mas esse nome pomposo parece ter escorrido, ralo abaixo, com o sal que o menino devolvera, numa cusparada acompanhada da respectiva careta e de um sonoro berreiro. Buaaaaaaaaaaaaa!

Aquilo ressoou pela nave a fora, passou pelos altares laterais, quicou no altar mor e foi morrer lá na sacristia onde dormitava o velho monsenhor, enfiado numa batina sebosa, com a bainha puída, ostentando duas enormes manchas de suor, embaixo dos sovacos. O cura levantou-se, meio tonto, e foi ver o que é que estava acontecendo lá na sacristia. Olhou, fez um muxoxo, uma imprecação murmurada e voltou lá para dentro.

Da capela até a casa dos pais, o menino já não tinha mais nada, ou quase nada, de José dos Anjos de Campos Astolfo. O pai, todo crente de si, dizia com seus botões que aquele seria um futuro general e, por isso, em homenagem ao Regimento e ao patrono, seria chamado de “General”. Só isso! “Ge-ne-ral”!Contratempos à parte, o pai se dedicava àquele filho como ave aos filhotes. Assim, cresceu, ultrapassou a adolescência e ficou quase adulto.

O cabo Campos, infelizmente, não teve tempo de ver o filho com as platinas de general. De tanto tocar trombone, um belo dia, em plena procissão de S.Benedito, em frente ao Convento das Carmelitas, ao soprar uma nota mais esticada, sentiu alguma coisa estourando lá dentro do peito. Poucos minutos depois estava caído ao chão se esvaindo em sangue que espirrava, aos borbotões, em meio a uma tosse cavernosa muito estranha.

Um motoboy, entregador de uma farmácia próxima ao quartel, muito carola e metido a enfermeiro, não perdeu a oportunidade de se manifestar. Ao testemunhar aquela cascata sanguinolenta, esguichada pela boca do cabo do trombone, foi logo dando o diagnóstico: Isso aí é “hemoptise”, pessoal! É hemoptise! Acho que não dá jeito! É daí pro necrotério e de lá, pro cemitério! Esse aí, ó! “Sifu”! Já era!

Nesse meio tempo, “General” parecia ter sido incorporado por um espírito de porco. O menino, desde cedo, se mostrou rebelde, arredio, respondão, vadio, mentiroso, e vários outros predicados pouco airosos. Pequenino, ainda, já era visto com terror, pelos meninos menores. Astolfo tinha a mania de roubar pirulitos, saquinhos de pipoca, sorvete e outras guloseimas que via nas mãos dos pobres coitados. Muitas vezes, além de tirar-lhe o prazer, ainda lhes aplicava cascudos com o nó dos dedos. Tozinho era a maior vítima. Implicava com a escola, emburrou com a professora, era indisciplinado e ficava reprovado em todas as matérias. Um dia, resolveu que não iria mais naquela porcaria de escola. Que se danasse todo mundo!

Foi aí que “General” andou bisbilhotando um galpão que havia a umas cinco quadras da sua casa. Ali se reuniam uns camaradas esquisitos com uns vidros de cola e um punhado de papel fino, colorido.

Não demorou muito estava lá dentro. Era um grupo de baloeiros que, na proximidade das festas juninas, ali se reunia para fazer balões com os quais procuravam competir com baloeiros de outras localidades.

“General” rapidamente mostrou-se habilidoso e bastante eficiente na confecção dos balões. Por isso recebeu a aceitação e o reconhecimento dos demais membros do grupo. Pouco tempo depois já liderava as ações e a alcunha de “General do Balão” corria pelas ruas próximas, como um nome de respeito, avançando pelos bairros adjacentes, em que outros grupos se dedicavam à contravenção competitiva.

Esses bandos eram procurados pela polícia e pelos bombeiros, os quais tinham um tremendo trabalho para apagar os incêndios que tais artefatos provocavam na cidade. Isso é crime! E crime, é coisa de polícia! Como consequência, cadeia, porrada e outros bichos...

Um belo dia, o grupo de baloeiros ao qual “General” pertencia, na calada da noite, soltou um balão cujo tamanho se aproximava ao de um edifício de quatro andares. O artefato subiu, ganhou altura e, lá de cima, iniciou a disparar foguetes e rojões que, ao explodirem, enfeitavam a noite de luzes e cores. O vento suave, mas insistente, levou o balão para os lados do Regimento.

Num determinado momento, um daqueles morteiros explodiu próximo à boca do balão e provocou um rasgo de bom tamanho, por onde se esvaía a fumaça responsável por torná-lo mais leve do que o ar e garantir a subida por um bom tempo. Perdendo sustentação, o balão iniciou a perder altura e veio em aceleração descendente, tal qual um velame de paraquedas encharutado.

Como era de noite, o Regimento também dormia. Somente as sentinelas de serviço cuidavam de seus postos mantendo a vigilância e a segurança das instalações. Por ironia do destino, apesar da queda do balão, a bucha se mantinha em plena combustão e antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa, o gigante ferido caiu bem em cima do paiol do quartel.

Não deu tempo de quase nada! Os soldados corriam para um lado e para o outro, chamaram o Cabo da Guarda, o Sargento do Rancho, o Oficial de Dia, o capelão, o enfermeiro de plantão o armeiro e até alguns recrutas que dormiam no alojamento... o corneteiro deu o toque de “reunir”...

Foi um Deus nos acuda! Uma confusão federal! Até o comandante, que estava dormindo o sono dos inocentes, foi acordado por um telefonema extemporâneo.

-- Comandante! Boa Noite! É o Superior de Dia!

-- Que boa noite, cara? Você me tira da cama e diz que é boa noite? Que porra é essa?

-- Desculpe, coronel! É que estou lhe informando que o paiol está explodindo! Caiu um balão bem em cima e incendiou o prédio! O senhor precisa vir para cá, urgente! Já mandei chamar o Chefe do Material Bélico!

O coronel ainda meio tonto de sono perguntou:

-- O paiol? Está explodindo? Caiu balão? Você tá maluco?

-- É como lhe estou dizendo, coronel! A coisa está feia por aqui!

-- Puta que o pariu, cara! Como é que foi acontecer uma porra dessas aí? E ninguém fez nada? Onde estava o pessoal de serviço que não protegeu o paiol? Manda prender a sentinela, o Oficial de Dia, o armeiro e toda a guarda do quartel. Caê o Chefe do Material Bélico? Aciona os bombeiros do bairro, do Méier, e do Quartel Central, lá no Campo de Santana.

-- Sim senhor, coronel!

-- Ah! Liga lá para a Base Aérea e dos Afonsos! Peça a eles para enviarem alguns carros dos bombeiros deles. Procure isolar a área e telefone para o Chefe do Pessoal, mandando a tropa se apresentar...

-- Sim senhor, coronel!

-- Já estou indo para aí!

O estrago foi grande e o trabalho maior ainda. Bombeiro nenhum do mundo ia chegar perto daquele inferno explodindo e arremessando partículas de metal para todos os lados. Só depois de muito tempo, passadas as explosões, os bombeiros conseguiram dominar o fogo. Nada do que restou servia para coisa nenhuma. Só escombros, ferros retorcidos e tijolos enegrecidos pelo fumo...

De repente, lá pelas tantas da noite, alguém meteu o pé e arrombou a porta da casa onde “General” morava. Estava tranquilamente dormindo, depois de ter enchido a cara de cerveja, comemorando com os colegas do grupo de baloeiros.

-- Cadê o filho da puta do “General”? Quem é esse cara?

-- “General”? É meu apelido! Meu nome é Astolfo! É uma homenagem ao general que comandou o Regimento! Foi meu pai que quis assim! Ele era cabo da Banda de Música! Tocava trombone!

Era um sargento da “PE”, com a metralhadora apontada para “General”! Atrás dele, uns trinta catarinas, cada um do tamanho de um armário de casal!

-- Você está preso! Safado do cacete! O trombone do seu pai, você vai ver onde é que vão enfiar! Terrorista filho da puta! Vamos pegar todos aqueles veados que acabaram com o paiol do Regimento! Você está fodido e mal pago!!!

Vamos embora! Gritou para a patrulha. Pega ele e joga lá no camburão!

Depois de uma inquirição no quartel, “General” abriu o bico e deu a ficha de todo mundo que fazia parte do grupo de baloeiros e ainda entregou alguns dos outros grupos... Do quartel foi direto para a Delegacia. Foi autuado e arrolado no inquérito policial! Em seguida enfiaram-no em uma cela em que já estavam uns traficantes mal encarados, gente de uma quadrilha perigosa.

Meses depois, com o concurso de advogados matreiros, foi comprovado que aquilo fora uma atividade capitulada como contravenção, muito embora os prejuízos tenham sido de grande monta, não foi constatada nenhuma vítima ou qualquer prejuízo à integridade física de alguém. Por ser “primário”, “General” pode voltar para casa. Responderia o processo em liberdade.

Era um domingo, feriado ou dia santo. Não sei bem que diabo de dia era aquele. Só me lembro que era dia de festa na casa de “General”. Estavam comemorando seu retorno e a liberdade, após meses de prisão, como responsável pelo incêndio no paiol do quartel.

Quando estavam comemorando o evento, bem na hora em que faziam um brinde, com os copos cheios de cerveja, alguém foi arrombando a porta e berrando a plenos pulmões:

-- Cadê o filho da puta do “General”? Quem é esse cara?

-- “General”? É meu apelido! Meu nome é Astolfo! É uma homenagem ao general que comandou o Regimento! Foi meu pai que quis assim! Ele era cabo da Banda de Música! Tocava trombone!

Era o “Gadanha”, um justiceiro, chefe de um bando de milicianos amigos dos baloeiros dedurados. Tinha a metralhadora apontada para “General”. Atrás dele, uns trinta comparsas, cada um, do tamanho de um armário de casal!

-- Você esta morto! Safado do cacete! O trombone do seu pai, você vai ver onde é que vão enfiar! Cagoete filho da puta! Vamos vingar todos aqueles manos que acabaram na cadeia por sua causa! Você está fodido e mal pago!!! Vamos embora! Pega ele e joga lá na van!

Nesse mesmo dia, um domingo, feriado ou dia santo. Não sei bem que diabo de dia era aquele. Só me lembro que era dia de festa na casa do “General”. Não teve tempo de tomar o restante da cerveja; deixou o copo pela metade...

No dia seguinte, na primeira página do jornal, em letras garrafais, a chamada:

“GENERAL CARBONIZADO NO MICROONDAS”

Enfiaram Astolfo no meio de oito pneus carecas e tocaram fogo...

Ao longe, nem lua nem estrelas; o negrume da noite apagou o “brilho” de “General”. O copo de cerveja ainda estava lá. Não tinha mais festa... Nem balão... Os soluços de Florita simulavam o derradeiro toque. O de "silêncio"...

Amelius

20/03/2017

Amelius
Enviado por Amelius em 20/03/2017
Reeditado em 20/12/2023
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