Órfãozinhos enjaulados

É ainda possuído de indizível emoção, amigos meus, que começo a vos contar a estória a partir do ponto onde termina, ou seja, do momento em que interrompemos bruscamente nossa iliada odisséica viagem, de volta a esta cidade planaltina, interrompida viagem esta em um trecho ignoto, mas por aproximação crendo a ter ocorrido numa freguesia qualquer da vizinha e gloriosa província de Minas Gerais, e tendo o ainda tão vívido o sucesso, com o coração ainda pesado e desejando ardentemente despejar a minha toda apreensão, é que vos trato agora como se fôsseis o casmurro delegado do interior mineiro que nos interrogou há duas madrugadas. Sendo assim, como vós todos sabeis e a psicologia avaliza, terei retirado de minha fala todo o conteúdo agressivo e poderei argumentar mais logicamente com o dito delegado quando ali retornar e, em Deus ajudando, conseguirei convencê lo a liberar os pobrezinhos lá enjaulados, já vai fazer três dias.

E eis que daquela viagem arrancou nos o vigia noturno no meio da neblina, correndo contra nós, nos advertindo a gestos e, provavelmente, a gritos e apitos que não ouvíamos, obviamente pela existência de vidraças fechadas na patinete em que viajávamos, de um assalto a mão armada, ali na praçazinha deserta, que madrugada já era. E a moça, de lenço no rosto, como quem se protege de éter, dita moça se encontrando de costas para de onde vínhamos, um auto estacionado nas proximidades, com um seu possível namorado dentro, Deus livre e guarde, mas provavelmente morto, assassinado, de pé um ladrão armado, ameaçador, que, ao contrário dos temores do vigia não nos atacou, mas houve por bem evadir se ao perceber nossa ruidosa aproximação, desaparecendo no mato contíguo, deixando, com certeza, seu trabalho pela metade, permanecendo a dita moça em pé, no meio da rua, de costas para a praçazinha, mãos para o alto, ela trajando jeans, chapéu, colete de couro marrom e blusa de mangas compridas, à moda cowboy. Aliás, ao vê la como a vi antes dos outros o moço talvez morto e o larápio cri ser ela a cúmplice do assalto e não a vítima, como mais tarde a minha lógica mais fria deduziu, senhor delegado.

Quanto a nós, por estarmos com crianças a bordo e estando nossa patinete com excesso de lotação, e à vida tendo nós bastante amor, nos desviamos para a esquerda, em direção à calçada da igreja matriz, assim atabalhoadamente, e do mais não podemos dizer, pois que, aos nos chocar contra a calçada da igreja, tudo sumiu em frente aos olhos nossos, como se a luz tivesse acabado e a fita escurecido na tela do cinema, até acordarmos em vossa presença, as crianças visivelmente agitadas, para o que rogo a vossa compreensão, pois são nada mais que anjinhos e convidados especiais do Menino Jesus, aliás, está cá meu filho, é aquele pirralho de seis anos, lindo como um conto de fadas, caiu-lhe ontem o primeiro dente, o doutor há de relevar isso se o olhar com olhos de esteta, está ali a sua dele namorada, de quatro anos, ainda sem profissão Vossa Mercê há de convir que há uma crise no mercado de trabalho pois foi por causa dele mesmo, meu filho, que estávamos a empreender a viagem, Vossa Mercê querendo poderá saber de onde vínhamos e o que fazíamos, a Polícia Federal poderá provar nossa passagem pela fronteira de Goiás e Minas dias atrás, claro, é estranho essa viagem assim de madrugada e aparecermos sem mais nem menos na praçazinha de vossa cidade, pilotando uma patinete carregada de crianças, dois adultos, o negro Bardo e eu, inseparáveis que nem Mandrake e Lothar, não, não há Vossa Mercê de imaginar coisas, não, não somos homossexuais nem mercadores de crianças, também não sou o flautista de Hamelin, não, quem dera, gosto muito de flauta, mas nada sei de tocá la, nem tampouco levamos crianças para a Ilha dos Orelhas de Burro, da estória de Pinóquio, nada disso, antes de mais nada, há de Vossa Mercê relevar o fato de estarem as crianças um pouco agitadas, o que se deve à serie de emoções no caminho, onde passamos por várias missas de aniversário de falecimento, rezadas estas junto a cruzes à beira da estrada, locais onde morreram gentes de desastres, de tiros, de facadas, machadadas, há-os aos milhares por este itinerário, daqui até o sul de Minas, que este país, quase campeão de vendas de armas para o mundo, quem sabe, por isso mesmo, paga as mortes lá de fora com a de tanta gente jovem por aqui, sinal disso são os tantos recordatórios funerários, será?

São locais mal assombrados, e as crianças a tudo viram, apesar de virem dormindo a maior parte do tempo, mas a viagem, como dizia, foi para trazê las, as crianças, especialmente meu filho, tendo vindo a dele namorada e outros amiguinhos que passavam as férias no futuro de meu filho, e que ele é muito curioso e quer saber como se vestirá, se portará, que espécie de amigos terá, como serão as relações de produção no próximo milênio, já que ele, no ano 2000, terá precisamente 25 anos, e ressalte se, neste ponto, que eu mesmo o vi aos 16 anos, no vídeo, pois tendo eu terminado a colheita mais rapidamen¬te este ano, tendo introduzido novas colheitadeiras automáticas nas minhas terras, fiquei assim à toa e a saudade bateu como um frio adiantado de outono, e resolvi buscá-lo das férias nessa tal Cidade do Futuro antes da hora aprazada, liguei a patinete e saí por esse mundo, não tendo ele, portanto, por causa de minha chegada tempo¬rona, tido oportunidade de avançar mais no conhecimento de sua própria vida futura, tendo interrompido suas averiguações aos 16 anos de idade, época em que, isso interessando ao senhor saber, terá ele perdido qua¬se todo o tom alourado dos cabelos, a pele estará mais morena, estará magro e sem espinhas, certa elegância e esbeltez, trajar-se-á simples-mente e estará morando em companhia de estranhos, não tendo eu, pelo que me lembra, reconhecido nenhum rosto da família naquele lugar, e em querendo Vossa Mercê ainda saber, aproveitei para ligar o vídeo, aproveitando o programa que o guri tinha usado para saber o que será de mim mesmo aos 50 anos e vim a saber que, ao fim e ao cabo, resumindo, serei feliz e não muito amargo, uma pessoa bastante sensata e dialogante, até quando não seja mais uma pessoa bastante sensata e dialogante, aliás, em Vossa Mercê se interessando, sugiro lhe uma ida ao lugar, há lá vídeos programados para qualquer ano e sempre há vagas - também os preços! e basta Vossa Mercê ter dinheiro para consultá los e disso não se duvida em absoluto poderá então o doutor saber de tudo sobre o próprio futuro e o de seus familiares, saiba Vossa Mercê abrir o terminal, algo aprendido em três tempos são terminais de computadores tipo domésticos e programa ali Vossa Mercê o dia, hora e ano em que deseja começar a assistir sua vida futura na tela, tudo o que o futuro lhe reserva, coisas da modernidade.

Sim, os terminais são alugados, o preço é por segundo de uso, mas queira Vossa Mercê agora nos dispensar a todos, pois é maio, faz frio, e nos espera ainda longo percurso sob as estrelas geladas até nosso sitio em Tabatinga, zona rural do Distrito Federal, onde cuidamos desses orfãozinhos, pobres eles, lá o ponto final de nosso périplo, queira Vossa Mercê desculpar, entre outras ousadias das crianças, a inquietação de meu filho que, se chora, é por pressa, pois tendo ele visto também nos computadores aos catorze anos a gu¬ria que se encontra ali ao seu lado, e sendo dita guria uma linda amostra do pecado na tal idade, resolveu o pirralho, por seguro, antes que outro aventureiro, desposá-la imediatamente, lá mesmo naquele burgo onde se acham os terminais dos computadores do futuro. E desejamos todos, o quanto antes, vermos terminados os interrogatórios e acabada esta maçada em que involuntariamente nos metemos, para que prossigamos a viagem sob céu goiano, haja vista que comprovado está que nossa participação nos eventos é meramente testemunhal, não tendo nada a ver com o assalto a mão armada, crendo estar a história de nossa viagem suficientemente esclarecida e não havendo, com todo respeito à ilustre avaliação de Vossa Mercê, razão para deter nos aqui por mais tempo, resta nos apenas pagar a multa de trânsito por estarmos trafegando em local proibido, agravada por excesso de lotação, bastando Vossa Mercê dizer nos o quanto, e que nada há mais a perguntar, pois que de nossa parte tampouco há o que declarar.

E vede vós, amigos nossos, que o delegado aos menores os enjaulou, alegando não estarem eles munidos de documentos legais, o que muito nos magoa, principalmente a mim, que lá deixei o filho e temo pelo destino dele, que pode até se modificar de todo e - ai - já pensastes como se explicará a Ciência, caso os orfãozinhos não possam seguir seu destino, aí ficariam como meros mentirosos os oniscientes assombrosos computadores do nosso e dele futuros?

William Santiago
Enviado por William Santiago em 16/02/2017
Código do texto: T5914218
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