Vazio No Vazio

“(...) Essa passeia pelo chão desenhando um vazio no vazio. Seria completamente vazio se agora a presença de outra figura masculina logo ao meu lado mais atrás, como se me observasse meio que imóvel. Não me sinto mais sozinho, agora apreensivo sobre a cuja presença ao meu tentar de vê-la pelo canto do meu olho dentre a barreira bagunçada emoldurada pelo meu cabelo.” -- Relato de um amigo criativo sobre seu sonho. Conto feito para ele como presente.

Palavras em Latim que nomeiam cada pequeno capítulo traduzidas aqui:

Inanis - Vazio.

Solitudinem - Solidão.

Tangeret - Toque.

Voluptatem - Prazer.

Vacuum et Vacuum - Vazio no Vazio.

Epilogus - Epílogo.

Rem - Matéria.

I - INANIS.

Sentado dentro de um quarto sem mobília ou rastros de conteúdo, ele é a única coisa visível no chão escuro em conjunto às paredes de mesma cor. A lajota fria é dividida em linhas invisíveis, mas sentidas sob as pernas cruzadas em posição de xis, mesmo assim não tem um fim palpável. São quatro paredes, lajotas divididas e um piso infindável. Se corresse pelo cômodo para alcançar uma daquelas paredes, jamais chegaria à tocá-la. Correria eternamente, sentiria o vento no rosto, e nunca viria ao seu objetivo. Não o tinha feito, todavia, a certeza era a única coisa naquele local agourento. A certeza que não devia se levantar. Não conseguiria tocar a parede.

Desenhava, portanto, usando a destra, um desenho tão invisível como as divisórias na lajota. Traçava algo sem forma, vazio, enquanto a outra mão sustentava o queixo pálido. O tempo era uma utopia, ele não sabia quantas horas, dias, meses ou anos estava sentado ali sem envelhecer, sem fome, sem sede, sem som. Sem cheiros ou sabores. O indicador jamais cansava sua rota, às vezes até retornava ao início. Sentia-se um artista no ápice da própria insanidade sem sequer ver sua obra. Não tinha cor. Não tinha nada.

II - SOLITUDINEM.

A solidão, ao contrário daquele espaço, tornou-se palpável. Mas, assim como seus desenhos nas lajotas, não tinha forma. Ela se espreitava, contudo, na escuridão completa do quarto, como olhos acinzentados olhando para sua vítima e sugando todo o fôlego de vida. Comparava-se a pequenas agulhas entrando, de início dolorosas, para então vir a sensação de dormência. Ele estava tão dormente que por algum período, desenhando formas vazias no vazio, não percebeu que aqueles olhos não eram somente sensações de uma mente cansada, nem do formigamento nas suas pernas. Alguém o observava. Alguém o queria.

Retirou o indicador da lajota fria e o pairou no ar por pequenos instantes, sem se atrever a olhar para trás, de onde vinha a sensação. Tentou expandir o campo de visão, mas a própria cabeleira espessa e cacheada o impediu de fazê-lo. Então arrumou a postura, esperando que o espectro demoníaco se aproximasse com seus tentáculos negros. Saía da parede, estava quase chegando. Não veio de uma vez, ainda tinha certa lentidão. Lágrimas quentes escorreram pelo rosto dormente do garoto e ele sorriu ao constatar que a sala tinha fim. Um fim identificável somente pelo seu companheiro silencioso.

III - TANGERET.

Novamente um lembrete que o tempo não existia veio à mente dele, logo não sabia o quanto estava ereto e ainda sentado esperando por qualquer coisa seguida da vontade daquele ser. Claro que a sua mente o levava para outros lugares diferentes daquele e as memórias vinham sorrateiras e coloridas. O sabor de um doce, o riso de seus amigos, o cheiro das árvores. O seu perfume preferido. A sensação de ouvir uma música ótima. O calor substituído pelo frio, os raios solares esquentando a pele. O quanto tinha fugido do sol! E não se recordava mais de seu toque.

Lentamente, ele percebeu que sua companhia tomou certa forma e os tentáculos negros cujo se sacudiram ao redor da parede a medida que saía dela, não existiam mais. Tentou vê-lo novamente, não conseguiu, não teve forças para virar o rosto. Todavia, ele teve uma nova certeza, a certeza que o companheiro tinha uma força máscula, forte, perceptível e expansiva. A verdadeira caixa de Pandora naquela dimensão surreal. O garoto trincou, sentiu a força se abaixar e tocá-lo. Não demorou a estar sentado atrás de si, um abraço tão violento quanto um mar revolto engolindo um pequeno barco dentro de seu redemoinho tempestuoso. Era frio, frio tal qual água salgada, envolvendo o peitoral e enchendo os pulmões de água. Tapando a garganta, a respiração, causando uma paixão viciante. Um alívio. O rapaz não luta contra um minuto sequer e o homem negro atrás de si não planeja soltá-lo. Na verdade, o aperta. O aperta forte contra o peitoral largo e gélido.

IV - VOLUPTATEM.

O corpo antes dormente começa a receber correntes elétricas que se espalham pelas veias, o coração bate forte, as pupilas se dilatam. O garoto fecha os olhos e joga a cabeça para trás, repousando-a no ombro largo daquela presença sem rosto, que usando seus dedos apertou seu peito e desceu por toda a extensão do tórax naquele carinho. O homem abaixou a cabeça e suspirou contra o pescoço dele, e quanto mais o hálito vinha, mais era gelado e convidativamente quente ao mesmo tempo. Não evitou um gemido ao chegar à conclusão que estava sendo puxado de encontro a mesma parede que sua companhia saiu momentos atrás, e seus braços começavam a se expandir como um berço. Há a sensação do assombro e do prazer quando percebe as paredes finalmente se aproximando, finalmente tendo um fim, exibindo outra imensidão dimensional azul escuro.

V - VACUUM ET VACUUM.

Seu companheiro não o soltou um segundo sequer e aos poucos sua forma antropomórfica voltou à completo espectro. Não existiam mais paredes, abriu-se um portal naquela e ele bailava no ar recebendo feixes de luz aumentando e aumentando, uma correnteza de outro oceano feito de, simplesmente, luz. O azul tornou-se prata, veio a ser dourado, o amarelo vivo acariciava a ponta de seus dedos com um calor que emocionou cada fibra do seu ser cansado do qual naquele momento, emitiu o som do soluço em meio ao pranto. O espectro negro o sustentava naquele abraço antigravitacional, quase um buraco negro sem sugar a matéria e sim acariciá-la em fascinação. Não tinha forma. Apenas sensações. Não era racional, eram sentimentos. Ele chorou, chorou, tentou dizer tantas coisas para seu companheiro, o quanto precisou daquele abraço a cada segundo da sua vida resumida à aquele quarto sem tempo. O vácuo multi-colorido sabia, portanto. Não devia dizer nada, eles sabiam, eles estavam ali, para todo e todo sempre. O Cosmos abria sua cortina, a viagem não teria fim. Ele, eternamente, estaria naquele abraço apaixonado e negro que se diferenciava do horizonte iluminado e ainda assim era parte dele. A escuridão fazia parte de tudo. A escuridão era gelada e o espaço quente.

Ainda tocando o calor usando as pontas dos dedos erguidas acima de sua cabeça, respirou uma última vez e sentiu o gosto salgado do mar. Estava viajando, sustentado por ausência de gravidade, deleitando-se no vazio dentro do vazio.

VI - EPILOGUS [ R E M ]

Uma mão trêmula tocou a que repousava na cama de hospital, o dorso adornado de tubos preparados para qualquer soro. Seu filho dormia a mais ou menos 1 ano e 4 meses, ainda existia esperança para aquela família. O acidente de carro machucou seu crânio ao ponto de levá-lo ao coma, nenhum ferimento foi tão grave quanto aquele. Durante todos os dias no período cujo a Terra girou, a família daquele rapaz perdeu toda a luz. A escuridão veio abraçar cada um, a solidão tomou forma de culpa para então retornar à sua original. Gélida e impalpável.

Ao seu lado, o marido apertou seu ombro em sinal de apoio e conforto, mas o modo quase doloroso que seus dedos se apertaram ali mostrou que não era somente isso. Ele chorava, um soluço que tentou ao máximo prender mas não conseguiu. Os cachos negros de seu filho eram visíveis, a cabeça confortavelmente virada para o outro lado. A cabeça cuja ele não conseguia mover sozinho, era sempre trabalho das enfermeiras virá-lo constantemente para que não criasse escaras. Era trabalho delas banhá-lo. Negaram-se a desligar aparelhos, o sonho do rapaz abrindo os olhos para a luz tornou-se cada vez mais distante, mas não tanto. Os Planetas estavam distantes da Terra, mas mesmo assim existiam. Mesmo assim estavam ali em órbita, eram matéria. No entanto, sonhos não são matéria. Eles existem na dimensão da mente, sem fim, sem toque. Era algo a parte de tão vil realidade.

O médico tentava olhar para a prancheta ao máximo em frente à maca e não encarar o casal fitando horas o filho horas o profissional. Ele esperava poder dizer que o paciente acordaria em semanas seguintes, que estavam tratando perfeitamente de seu problema incurável. Novamente, sonhos não são palpáveis. Desejos não são matéria. Ele dormiria para sempre, jamais envelheceria, jamais, quiçá, conseguiria voltar a fazer o que fazia se por um milagre despertasse. Quando o cérebro morreu, era somente uma questão de tempo. A morte cerebral foi declarada às três e quinze daquela madrugada.

Cansada de querer ser forte, de querer parecer inquebrável, a mãe do paciente verteu-se no choro que só pranteava sozinha. Seus ombros se balançavam com rapidez, seu marido a abraçou ao abaixar-se ao lado da cadeira. Ela apertou com mais força a mão do filho e levando-a aos lábios, ignorou os tubos e beijou o dorso ainda quente e em breve gelado. Não houve reação do menino, apenas vazio no vazio.

-- Eu sinto muito, mas não aconselhamos mantê-lo por aparelhos. É um caso irreversível. -- Lembrou o médico, desconfortável, os próprios olhos mornos nas lágrimas.

Outro soluço veio da mãe, o pai a embalava sem sucesso.

-- Preciso que assinem. -- Relembrou, segurando a prancheta com tensão -- Eu sinto muito, eu sinto muito.

-- O que vamos fazer, querida? -- O pai se pronunciou, a voz rouca -- Não posso fazer isso se você não estiver comigo.

Ela não respondeu, apenas uma torrente de lágrimas veio. Um grito sem voz.

-- Senhores. -- O médico colocou a prancheta na mesa de cabeceira um pouco distante do garoto inerte. Repousou a caneta ali e notou que ela estava tão parada quanto o paciente. Tão vulnerável quanto ele. E inconsciente. Uma matéria sem força. -- Apenas pensem com cuidado. -- E delicado, finalizou -- Devemos ou não desligar os aparelhos?

James Ravencliffe
Enviado por James Ravencliffe em 06/02/2017
Reeditado em 06/02/2017
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