938-AURORA E GILDA - O REENCONTRO

— Vam’embora, Aurora!

Michel é um homem impaciente. Ele e a esposa estão de saída para São Paulo, após passarem uma semana na cidade de Morro da Cruz, visitando parentes e amigos.

— Ara, Michel! Que pressa! Já te falei que antes de sair da cidade quero visitar minha grande amiga Gilda.

— Pois então! As malas já estão no carro! Vamos logo!

Ela ainda dá mais uma olhada no espelho do saguão do hotel, passa as mãos pelos cabelos, desce a escadaria atrás do marido e entra no carro.

Assim que põe o carro em movimento, Michel pergunta:

— Ela ainda mora lá no alto da caixa d’água?

— Claro, ela sempre viveu ali. E ali vai morrer, coitada! Solteira, sozinha...

O carro sobe rápido a rua que termina na pracinha, um mirante para a cidade toda. Ao estacionar a frente da pequena casa, Aurora sai do carro enquanto Michel avisa:

— Só quinze minutos, tá bom?

— Tá bom, tá bom, querido – Aurora responde, com uma displicência indicativa que a demora não se limitará aos quinze minutos.

A casa é velha, deve ser centenária. Aurora, que frequentara a casa em melhores condições, observou que há um ar de abando definitivo. No pequeno jardim da frente, em um canteiro estreito apenas um pé de manacá muito velho, o tronco cheio de manchas brancas de fungos e parasitas, espera por uma poda ou um cuidado qualquer.

Bateu à porta uma, duas vezes. Foi aberta por uma senhora de idade indefinida de rosto vincado por rugas, que solta um gritinho de alegria ao reconhecer a visitante.

— Aurora! — e sem mais, desceu um degrau e se abandonou nos braços da amiga. — Quanto tempo! Que saudade!

— Gilda! Minha querida! — Falou Aurora, meio sufocada pelo abraço cheio de carinho.

— Entre, meu bem. Entre.

Aurora examinou a amiga: os cabelos grisalhos estão amarrados num coque sobre a nuca. O rosto era um labirinto de rugas. Um chalé de crochê sobre os ombros escondia detalhes do pescoço e dos braços.

— Você não mudou nada, Gilda! — Disse Aurora, procurando disfarçar sua surpresa ao ver a amiga tão decrépita.

— Ara, sua mentirosa! Você, sim, cada vez mais bonitona, elegante. Mas não vamos ficar conversando aqui na soleira. Entre! Vamos, venha!

Gilda puxa a amiga pela mão.

Ao sentir o aperto de mão de Gilda, de uma frigidez sobrenatural, e adentrando na sala com móveis antigos, cobertos com pequenas toalhas de crochê amareladas, e objetos decorativos que vira ali vinte ou trinta anos atrás, Aurora teve a impressão de que estava entrando num mundo do passado.

Alguns porta-retratos sobre os móveis com fotos antigas. Olhou com interesse para uma de um grupo de moças. Como que adivinhando a pergunta de Aurora, Gilda foi até a cristaleira e pegou o retrato, trazendo para a amiga, dizendo:

— Olhe, somos nós no meio da turma do terceiro ano. Aqui está você, e esta do outro lado sou eu.

Aurora passou a vista pela fotografia.

Quantas recordações pensou. Colegas, amigas, mocinhas de então que deveriam estar na casa dos setenta anos. Velhas, iguais a ela. Iguais à Gilda.

— Venha aqui no meu quarto, tenho um álbum com muitas fotos suas, comigo, com o Luiz, com as Irmãs do colégio...

E tinha mesmo, o álbum de capa encardida e as fotos saindo das cantoneiras, onde tinham sido colocadas, como se usava então. Todas em branco-e-preto, muitas desbotadas pelos cantos ou manchadas como se um ácido amarelo houvesse respingado sobre elas.

Poses engraçadas, grupos alegres, as paradas dos feriados, as procissões. Tudo estático e que evocavam as movimentadas situações vividas pelas duas amigas.

Aurora sentia-se mergulhada no passado, naquela época de convivência comum com Gilda. Olhou para o relógio, preocupada com o tempo concedido pelo marido – “quinze minutos!” O relógio parara. Deixara de marcar o tempo. Mas, o que significava o tempo, o correr dos minutos, horas, dias, quando ela própria estava presa a um tempo em que não havia como contar em minutos, horas ou dias?

Folhearam todas as folhas do velho álbum de fotografia e Gilda, ao fechá-lo com cuidado, pousou sãs mãos nas mãos da amiga.

Aurora sentiu novamente aquela algidez quando trocaram cumprimentos à porta.

Que coisa mais estranha, ela está tão fria. Quase gelada! – pensou.

— Venha. — convidou Gilda, puxando Aurora pela mão. — Vou mostrar o quintal. A gente brincava tanto ali.

Atravessaram a cozinha e foram ao quintal. Estava tal qual antigamente. As árvores frutíferas enormes como antigamente: um pé de cajá manga, as folhas todas amarelas, a pique de caírem pelo calor do outono; um imenso pé de jambo-rosa, a mangueira e as quatro jabuticabeiras, no fundo, perto do muro. A folhagem impedia a passagem da luz do sol e o chão estava denso de folhas caídas. Secas. Mortas. Em decomposição.

— Olha, acho que tem jabuticabas temporonas.

E tinha. Aurora até ensaiou subir por um galho, mas desistiu.

— Não precisa subir, não. Veja aquele pé ali no fundo, as jabuticabas estão nos galhos mais baixos.

Deliciosas. Fresquinhas. Estalavam na boca.

— Olha ali, no tronco da mangueira. Naquele banco. Você se lembra? Ali você se sentou muitas vezes com o Luiz, o meu irmão.

— É... ele queria me namorar, mas eu não. Nós éramos só amigos.

Aurora estava integralmente integrada no mundo de Gilda. Naquele quintal mágico... tantas recordações!

Lembra-se quando a gente estudava, sentadas ali? Era fresquinho nas tardes quentes de fim de ano, e a gente tinha de obter boas notas em latim, história...

— Quase tomei bomba!

— E o dia em que você caiu do pé de jambo?!

— Menina, escalavrei a coxa e os joelhos... foi um desastre?

Aurora demorava-se nas recordações. Era como se estivesse novamente vivendo/revivendo aquelas situações, sentindo as mesmas emoções.

De repente, acordou daquele sonho. Lembrou-se de Michel esperando no carro.

— Desculpe Gilda, tenho de ir. Meu marido me espera no portão.

— Mas antes vamos lá dentro, quero te dar um mimo.

Voltaram para a casa. Gilda abriu uma gaveta de um aparador colocado no canto da sala e dela tirou pequena caixa. Vermelha e azul, parecia uma caixinha de anel.

— Tome. É sua. — Ofereceu Gilda.

— Mas... Gilda...

— Vamos, abra!

Abriu.

— Gilda!!! Meus brincos, que usei na festa da formatura de normalista!!!

— Pois é, querida, você esqueceu aqui naquela noite tão feliz. Ficaram numa gaveta e só há pouco tempo os descobri.

— Obrigado, amiga! Lembrava-me deles constantemente, pensei que havia perdido.

— Pois é. — Disse Gilda, com voz firme e em tom autoritário — Agora você já pode ir!

Que palavras estranhas, pensou Aurora.

Despediram-se com abraços cheios de afeto e carinho.

Aurora desceu os dois degraus, caminhou até o portão e olhou para trás, para um último aceno à amiga inesquecível. A porta estava fechada, como se não tivesse sido aberta há instantes.

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— Demorei, querido?

— Ora, mimosa, que demora, que nada. Você nem bem entrou na casa e já saiu.

— Hã?

Consultou o relógio de pulso: voltara a funcionar.

Michel ligou o carro e partiram.

Durante a viagem de volta ao lar, Aurora não comentou com Michel a visita que fizera à amiga. Achava cada vez mais tudo muito estranho e guardou para si os felizes momentos de recordação – ou revivência? Aliás, não sabia com certeza se teriam sido instantes, momentos ou minutos.

Ao chegar ao seu apartamento em S. Paulo, estava ansiosa para comentar com alguém o que já catalogara como coisa inexplicável o que vivera. Telefonou para a irmã Helena, em cuja casa ficara hospedada com seu marido, naquela semana tão maravilhosa. Queria agradecê-la mais uma vez e contar seu encontro com a amiga da juventude.

Quando a irmã atendeu, foi atropelada pelas palavras e frases de Aurora.

— Sabe, Helena, você se lembra da Gilda, aquela que foi minha colega no colégio?

— Sim, lembro dela sim. Coitada! Tão sozinha que...

— Pois é, passei na casa dela e fiz uma rápida visita e...

— Como é que é? Visitou a Gilda? Aurora, você ficou...

Aurora não escondia nem refreava sua ansiedade em contar à irmã os detalhes do encontro.

— Pois é, Helena, entrei na casa, nós folheamos juntas o velho álbum de fotos, fomos até o quintal. Até jabuticaba chupamos.

— Espera, Aurora, me escute...

— E sabe o que ela me deu? Aqueles brincos que eu havia perdido no dia da formatura. Estavam na casa de Gilda. E ela me entregou ...

— Espera um pouco, Aurora! — a irmã gritou do outro lado da linha.

— Que foi?

— Cê ta maluca ou o quê? A Gilda morreu tá fazendo uns seis meses...no começo do ano!

Aurora deixou o fone cair. Olhando aterrorizada para os brincos como se fossem coisas do outro mundo e caiu num choro de histeria e horror.

ANTONIO ROQUE GOBBO

São Sebastião do Paraiso, 26 de janeiro de 2016.

Conto # 938 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/01/2017
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