Aura de Autoridades

Aura* de Autoridades

Parecia ser um anfiteatro enorme, coberto. Carteiras, umas dez fileiras em arcos, ligavam-se ao palco, no centro, deixando livres três caminhos, em raios, por aquele quarto de círculo.

Havia muita gente. Usavam túnicas brancas em estilo romano. Calados, todos, absorviam a voz que ecoava do palco. Os rostos sumiam num embaçado de fumaça pálida. Não podia reconhecer ninguém.

A voz do centro elevava a figura pequena, da qual partia. Vestia-se como as outras, salvo pela cor, fúcsia. Não lhe desvendava o rosto. Pressentia-lhe, porém, o nariz vigorosamente empinado. A pose, a autoridade e a eloqüência ocupando todo o ar, infiltrando-se pelos orifícios da audiência; suas palavras alcançavam os ouvidos puros como dedos em riste, incontestáveis.

Sentia-me encolher, a começar pelo estômago. As mãos, pareciam-me enormes, infladas como balões de Hélio, quase como se não me pertencessem mais ao corpo. Cabeça latejando. Mesma sensação que quando em criança, com febre. Inda assim queria continuar ali, quietinha, oculta, anônima. Interessava-me muito o que ouvia.

De repente foi como se, entre as fileiras, emergisse um punhado de rochas pontiagudas, vindas bem lá das profundezas, criando um barulho de arranha-céu desabando e, pouco depois, abafado por um pó de silêncio sepulcral.

Como? Quem disse isso?, quis saber gravemente a figura do centro. Somente aí tomei consciência de que, ao final de sua fala, fizera eu ecoar um pensamento. Todos, absolutamente TO.DOS os olhos se voltaram para mim. Meus poros se apertaram: não passaria nem uma agulha.

"Só quem domina as técnicas pode burlá-las", repetiu, e então perguntou-me, em tom de com quem mesmo você pensa que está falando: A senhorita discorda? Engoli em seco. Apertava as mãos. A cabeça a mil por hora em busca de uma resposta. Pense, pense. Não! Não pense, responda sem pensar. Se continuarem enchendo minha cabeça com essa merda toda, aí mesmo é que vou matar, de vez, toda a criatividade que ainda resta em mim! Pronto, havia falado!

Mordi o lábio. Um medo enorme tomando conta de mim. Eu e minha boca grande. Mas será que eu não aprendo? Quanto menos você falar, menos tolices dirá, eu te disse, eu não te disse? Cala a boca, jacaré! Não, agora vão cair matando em cima de mim e é bem feito. Toma-te!, Cain-ain, cain-ain, cain-ain..., “Ai meu couro, meu courinho”; Em boca fechada não entra mosca, mulher. Ai minha nossa senhora da bicicleta empenada, nunca mais vou dar um pio!

Bocas enormes se abriam querendo me engolir, sugando todo o ar que me restava. Eu fui murchando, encolhendo cada vez mais rápido, agarrava-me ao braço da cadeira para não ser puxada pelos redemoinhos negros nos olhares de meus contendores.

Vozes ecoavam de todos os lados. “A gente não muda nada. A gente só quer desabrochar.”, “Jamais escreveria: O homem tomou o ônibus. Frase pobre! É, mas se o homem não tomar o ônibus não poderá morrer na página 52”, “Quem fala da vida é porque não tem trabalho para mostrar!”, “Se alguém pergunta ao autor o que ele quis dizer, um dos dois é burro”, “Deixe as criticas para os especialistas”, “Escritor? mas só se for dos bons!” Eu apertava os olhos e gritava: Ai meu Deus, me ajude agora! Agüenta! Falou, agora agüenta! Não queria virar escritora? E nessa luta, o braço da cadeira criou olhos tigrados, rosnava feroz e depois ... depois passou ... a miar. Ai meu Deus, será que morri de novo?! E miava mais forte, tilintando as garras na porta... Porta, que porta?! Raus, aber schnell!!

Ufa! Eu e minha boca grande! Não disse que queria dormir hoje até o gato miar? Pois bem, o bichano parece que entendeu! Já deve estar um tempão lá fora, miando e arranhando a porta do quarto, esperando alguém criar coragem de levantar e lhe servir o café da manhã, pensei, ao acordar.

* Aura – s.f. 1) brisa 2) irradiação luminosa que envolve os seres 3) sinal que precede uma crise epilética. (Houaiss)

-- O mais legal em ser artista é que se pode enlouquecer e mudar de opinião, sempre que se queira!

Nota da autora:

Não se trata de um desabafo ou coisa parecida. Era pra ser, simplesmente, um “exercício”, um “namoro” com as palavras.

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Revisado em 01.08.2010 e 17.09.2010