O Roubo na casa do padre

— Temos que ser rápidos, o mais rápido possível!

— Certamente! E como faremos para entrar na casa, tem alguma ideia?

— Ainda não, mas não deve ser difícil.

Assim discutiam dois jovens, assíduos nas últimas missas na paróquia, como fariam para roubar todo o dinheiro que viam sendo depositado na igreja em todas as missas nos últimos dois meses. Segundo suas contas, para mais de cinquenta mil reais.

Passaram a monitorar todo movimento que acontecia ao redor do padre, a hora em que saía, onde estava, onde era guardado o dinheiro. Dificilmente eram vistos juntos. Sempre estavam na missa, porém um em cada canto da igreja.

Ambos os jovens eram conhecidos por apelidos: Japim e Bem-te-vi. O porque desses apelidos não saberia explicar. Nem mesmo os fiéis da paróquia sabiam explicar de onde provinham ambos os jovens. Mas já haviam notado havia dias suas presenças discretas, um no banco da frente, próximo de onde se depositavam as ofertas, e o outro no fundo da igreja, próximo da saída.

A igreja era antiga, fora construída pelos escravos. O altar era brilhoso, tinha uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré no centro, acima do sacrário. O sacrário brilhava mais do que a luz, ao entrar na igreja era impossível não notá-lo. Os bancos eram todos bem trabalhados em madeira de ipê. As paredes laterais tinham outros altares, cada um com uma imagem de um santo ou santa. O teto continha diversas pinturas de anjos. Uma delas mostrava de um lado Deus em seu paraíso e do outro o demônio no inferno.

A casa do padre ficava nas dependências da igreja. Quando terminava a missa, já saia da sacristia e entrava em casa. Poucas pessoas tinham acesso à casa. Até porque ele sempre fazia questão de atender os fiéis sempre dentro da igreja.

Voltemos a falar do plano de Japim e Bem-te-vi. Estavam em um bar tratando do assalto:

— Você diz que não deve ser difícil — diz Japim — mas como entrar lá sem ser notado, se a única entrada é por dentro da igreja? Sempre tem gente na igreja.

— E tem jeito melhor de assaltar que entrar pela porta frente? — falou Bem-te-vi com ar irônico — o próprio padre abrirá a porta da igreja e da casa para nós.

— Como?

— O padre já está velho, mora sozinho...

— Então é melhor sequestrarmos o padre...

— Não podemos chamar a atenção — continuou Bem-te-vi — um sequestro chamaria muita. Não usaremos armas, não machucaremos ninguém. Só queremos o dinheiro, somente isso.

— Uma ótima data será após a festa da padroeira, o que acha?

— Pode ser.

A festa da padroeira acontecia todos os anos. Geralmente ocorria durante toda a semana e encerrava-se em um domingo com uma grande festa à noite. Porém todas as noites aconteciam diversos eventos. Aconteciam rifas, bingos, leilões; e com tudo isso arrecadavam muito dinheiro.

— Encontre-me na terça-feira, dois dias após a festa, perto da igreja — Disse Bem-te-vi.

— Qual o plano?

—O plano é o seguinte: nós...

Era terça-feira, por volta das 20 horas. Estava chovendo, as pessoas da cidade já se haviam recolhido. A cidade de Jacatu era pacata e quando chovia os moradores recolhiam-se cedo. A casa do padre ficava na região central da cidade, mas não contava com nenhuma segurança reforçada. Os fiéis sabiam e respeitavam a residência do padre, só entrava lá quem ele permitisse. Em noite chuvosa as pessoas evitavam sair à rua, mas duas figuras chamavam atenção, dois homens vestidos de batina. Embora tenha causado certa estranheza, pois na cidade só havia um padre e não dois; ele usava batina preta e não branca e dificilmente saia a noite. Ambos os homens usavam barba, carregavam uma mala preta, parecia que estavam de viagem. Timidamente, os moradores simplesmente olharam ambos os forasteiros pela janela, mas não deram muita bola. Deve ser padre novo que está passando pela cidade, pensavam alguns.

Os dois homens se dirigiram para a igreja. Ao chegarem, adentraram no templo que se encontrava somente com a porta entre aberta, ficava assim durante o dia todo para os fiéis que quisessem fazer suas orações. O padre, antes de se recolher, ia à igreja, rezava as completas e depois fechava tudo.

— Olha o jeito que você anda!

— Ué, como eu ando?

— Não está convencendo ninguém que é padre.

— Claro, seu burro, quem usa batina branca é o PAPA, PAPA só existe um e mora no Vaticano.

— O povo não sabe disso e o padre já enxerga mal, nem vai notar; e outra, está noite.

Ao chegarem à igreja, havia somente duas senhoras que já se estavam retirando, e o padre sentado no banco da frente de cabeça baixa, provavelmente rezando o terço. Padre Joãozinho, como era conhecido, sempre acolhia com simplicidade àqueles que o procuravam. Embora querido pelo povo, era uma pessoa misteriosa e causava mais mistério ainda por permitir o acesso a sua casa a poucas pessoas, geralmente a um religioso ou padre que estivesse passando em viagem. Os homens se aproximaram dele, um falou:

— Boa noite seu padre, a paz de Cristo!

— Boa noite! — respondeu o padre sem levantar a cabeça. Pois pensava tratar-se apenas de algum fiel.

Creio que o leitor já deve ter notado que os dois homens, na verdade, tratavam-se de Bem-te-vi e Japim. Ambos sabiam das condições de saúde do padre. O mesmo, sendo filho único, era filho de um rico comerciante do Rio Grande do Sul. Deixou a família e entrou em uma ordem religiosa para se tornar missionário e padre. Por ser filho único foi o herdeiro de uma formidável fortuna. Metade do dinheiro estava no banco e a outra provavelmente em sua casa. A maioria dos bens fora doada para instituições de caridade, a reforma da igreja, a casa paroquial, a famílias carentes. Apesar de todas essas doações, ainda havia muito dinheiro que ainda não fora gasto.

— O senhor é o pároco da paróquia? — perguntou Japim.

Ao ouvir a pergunta o padre levantou a cabeça e olhou meio desconfiado para aqueles homens vestidos de batina branca e de barba. Os dois perceberam que ele enxergava com dificuldade, pegou os óculos que estavam sobre o breviário no banco e colocou-os para tentar enxergar melhor. Falou com uma voz rouca e cansada:

— Sim — foi dizendo, colocando os óculos e levantando-se com dificuldade. Estendendo a mão para um dos homens, indagou — e vocês, quem são?

— Somos — começa dizendo Bem-te-vi — padres missionários de uma nova comunidade fundada há pouco tempo por um bispo na Paraíba. Estamos de passagem por aqui e resolvemos vir saudá-lo, desculpe-nos a hora!

— E os senhores vão aonde a essa altura da noite, essas estradas são tão perigosas...

— Na verdade — interrompeu-o Japim — estamos à procura de um lugar para passar a noite e amanhã prosseguiremos com a viagem.

— E onde pensam em ficar, na cidade não há hotéis!

— Não temos preferências por acomodações, afinal, como dizia Nosso Senhor: ” as raposas têm suas tocas, os pássaros do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem nem onde reclinar a cabeça”.

— Imaginem se deixarei servos de Deus assim ao léu, venham, vamos até à casa paroquial.

Dirigiram-se para a casa paroquial.

— Fiquem à vontade! — Disse o padre ao entrarem na casa. — Já jantaram?

— Sim, não se preocupe, basta um lugar para reclinar a cabeça e ficaremos bem.

A casa não era luxuosa, mas confortável. Contava com poucos móveis, a sala era pequena: tinha uma TV, um rádio a pilha e um sofá.

— Mora mais alguém com o Senhor? — Perguntou Japim.

— Jesus, somente eu e Ele!

—Venham, levá-los-ei ao quarto. Como já sou velho e tenho dificuldade para locomover-me, peço que se os senhores quiserem tomar algo quente, um chá, por exemplo, aqui é a cozinha, podem vir depois — foi dizendo e apontando para um cômodo meio escuro que parecia ser mesmo uma cozinha.

— Ficamos gratos pela acolhida, falaram os dois ao mesmo tempo.

— Aqui há dois quartos, um pode ficar aqui e outro aqui do lado. Durmo lá perto da capela, pois como já estou velho, se vier a morrer, já estou junto de Nosso Senhor. — O padre deu um leve sorriso. — Fiquem à vontade, vou dormir, durmo cedo sempre. As camas já estão prontas, sempre as deixo para esse tipo de emergência.

— Nós iremos à igreja rezar o terço, sempre rezamos o terço antes de dormir, é um costume da ordem da qual somos membros.

—Vocês já sabem o caminho, a porta está aberta, deixo-a sempre aberta, os moradores aqui da cidade são pessoas que respeitam muito a casa de Deus e consequentemente as dos seus servos — que somos nós— e, por isso, nunca sofri nenhum assalto ou roubo. Aliás, há casas aqui em que os moradores dormem de portas abertas quando está muito calor. Somente as portas que dão acesso à igreja ficam fechadas, e somente à noite, mas não por medo das pessoas e sim para evitar que entrem animais, como cachorros, morcegos, etc. — Boa noite, até amanhã!

— Boa noite! — responderam juntos novamente.

A única luz acesa da igreja era a do sacrário, uma luz vermelha. Há uma crença bastante difundida entre os moradores de Jacatu, que a noite é o momento das almas irem fazer suas orações na igreja. Meia-noite era o horário exato e por isso ninguém tinha coragem de entrar na igreja ou ao menos olhar para seu interior. Nem mesmo o padre ia à igreja a essa hora, pois era a hora dos mortos.

— Vamos dar um tempo aqui na igreja até o padre dormir, disse, sussurrando, Bem-te-vi.

— Mas temos que achar esse dinheiro antes do dia amanhecer.

— Nós vamos achar, não deve ser difícil.

— Mas como, se não podemos nem acender as luzes.

— Olha aqui, o padre deve dormir com a porta do quarto aberta, entramos lá, colocamos esse abafador de som em seus ouvidos, essa venda e tem essa injeção aqui que vai deixá-lo dormindo feito pedra até amanhã. Podemos até colocar um som alto que ele nem vai acordar.

Ouve-se um barulho do lado de fora igreja, alguém sussurrava!

— São duas almas, viu como é verdade!

— Meu Deus!

—Vamos sair daqui, elas nos viram.

Agora, ouviam-se passos apressados. A voz era de um rapaz e de uma moça, provavelmente estariam namorando atrás da igreja e, por saberem da crença, olharam para dentro pelas frestas da porta para confirmarem tal crença.

— Melhor entrarmos logo e roubarmos.

— Tem razão.

Ao entrar na casa, Bem-te-vi esbarra em um vaso que se despedaça no chão fazendo barulho.

— Seu burro, não faça barulho.

— Será que isso não é um aviso para não roubarmos o pobre padre?

— Qual é, vai amarelar agora? Já estou aqui e daqui não saio sem a grana.

Foram até a porta do quarto do padre, tudo silêncio. Entraram. O padre parecia dormir um sono pesado, nem se movia e nem se ouvia a respiração. Colocaram um abafador nos ouvidos do padre, uma venda e aplicaram uma injeção. Porém, sentiram que havia algo estranho, o padre estava gelado e parecia não dar sinal de vida.

— Cara, veja —Disse Japim — Ele está morto.

— Morto! Mas como, acabei de aplicar a injeção e só para ele dormir.

— Pare de ser idiota, ele morreu provavelmente na hora em que deitou para dormir.

— E agora, o que vamos fazer?

— Ué, o que viemos fazer, ninguém teve culpa se ele morreu, deixemo-lo aí e vamos procurar a grana.

O padre Joãozinho guardava uma verdadeira fortuna, mas ninguém sabia. Não se faz referência aqui do dinheiro da paróquia, as doações dos fiéis, os dízimos, seu salário como padre, da festa da padroeira, pois estes estavam em uma conta no banco que era administrada por um grupo de fiéis; E sim da fortuna que guardava em casa que era a herança de seus pais, que não gastara totalmente. Além de dinheiro, havia muitas joias, provavelmente eram de sua mãe.

—Vamos começar a procurar.

— Não é para pegar nada além de dinheiro, hein! — Afirmou categoricamente Bem-te-vi. Estava suando, nervoso. — Procure aqui dentro do quarto que vou procurar nos outros cômodos da casa. Mas lembre-se, isso aqui não pode parecer assalto e nem roubo, portanto, cuidado com bagunça.

Enquanto Japim ficou no quarto, Bem-te-vi foi para a capela, parecia certo do que lá iria encontrar o que desejava. A capela era simples, tinha algumas cadeiras, um altar, um sacrário e acima do sacrário uma grande imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Dirigiu-se ao sacrário, abriu-o e olhou dentro. Só havia hóstias. Olhou ao redor. A única luz que iluminava a capela era a do sacrário, uma luz amarela e forte. O sacrário estava sobre um altar encostado na parede, na mesma parede que dividia o quarto do padre da capela. Tirou uma lanterna do bolso e focou dentro do sacrário. Afastou as hóstias, tirou o fundo do sacrário, pois era falso. Atrás do fundo falso tinha uma abertura de cofre com um segredo. Retirou da mochila que carregava um livro velho, e começou a folheá-lo, leu algo e começou a mexer na abertura. Ao fazer isso, toda a estrutura onde estava o sacrário abriu para o lado e a imagem de Nossa Senhora veio descendo levemente até parar no chão.

— Meu Deus! Que é isto?

Eram tantas notas de dinheiro que era impossível saber quanto havia ali. Pegou na coroa da imagem e a girou. A imagem abriu-se ao meio e dentro estava cheia de joias. Foi ao quarto do padre e chamou o comparsa.

— Venha cá, esqueça dinheiro do dízimo, de festa...

— Você achou algo mais valioso?

— Achei o tesouro que procurava.

— Como assim, e os cinquenta mil reais?

— Depois te conto.

Ao chegar à capela diante do sacrário, Japim ficou boquiaberto ao ver tanto dinheiro e joias. Pegaram tudo. Deixaram tudo como haviam encontrado, somente o vaso quebrado que tiveram que levar para não chamar atenção. Tiraram a venda, o abafador de som, e deixaram o padre exatamente como havia deitado para dormir, mas que agora estava na presença de Deus.

Na manhã seguinte a notícia já corria pela cidade, que o padre Joãozinho havia morrido. Mas era um homem santo, pois Deus mandara dois anjos virem buscá-lo. Ambos os anjos foram vistos caminhando pela cidade em uma noite chuvosa, a chuva deveria ser benção dos céus, pois ninguém sairia de casa e assim não atrapalhariam a ação dos anjos. E ambos foram vistos dentro da igreja na noite em que levaram a alma do santo Joãozinho.

No dia seguinte, já bem distante dali, Bem-te-vi dirigia um carro preto e contava todo o plano para Japim:

— Estava na igreja quando vi sobre o banco no qual ia sentar-me um livro preto, já velho. Quando o peguei, notei que se tratava de um diário. Depois de folheá-lo vi que era do padre. No diário estava escrita toda a vida do padre, com descrição da fortuna que guardava em casa. A fortuna não era lícita, era fruto de muito roubo de sua família que mora lá no Rio Grande do Sul. O padre a recebeu como herança, mas ninguém sabia. Por ser ilícita, ele não queria prejudicar a imagem da família e por isso não a entregou à polícia e nem fez nenhuma denúncia. Aliás, o nome dele estava envolvido em algumas tramoias. Talvez mais por isso não entregou a fortuna. Enganamo-nos ao pensar que o padre guardava o dinheiro da paróquia em casa, está toda no banco e há um grupo que administra o dinheiro.

— E por que não me disse isso?

—Talvez por não confiar em suas ideias. Certamente você iria dar palpites, coisa que não queria, porque meu plano era perfeito. No diário o padre deixava claro que todo aquele dinheiro nunca sairia dali, debaixo do Senhor e dentro de Nossa Senhora. Ele ia morrer, mas não revelaria para ninguém onde estava a fortuna. Queimaria o diário assim que pressentisse que morreria. Imagine, mais de 7 milhões em espécie e joias esquecidos, agora é tudo nosso!

Ao dizer isso, Bem-te-vi aumentou o som do carro, pisou fundo no acelerador, jogou o diário nas margens da rodovia e despareceu na Transamazônica.