Cristal

Gemma apenas ouvia em silêncio, as lágrimas descendo por seu rosto sem que tentasse limpá-las. Do outro lado da escrivaninha, seu pai falava, devagar e pausadamente, num tom quase hipnótico.

- Qual é o nosso negócio? Vendemos recreação, uma válvula de escape para os rigores da vida moderna. Se pensarmos bem, não somos muito diferentes dos fabricantes de bebidas alcoólicas e tabaco... a diferença é que eles podem exercer sua atividade legalmente e nós não. Não vendemos morte, como fazem os traficantes de armas. Armas só servem para uma única coisa: matar. O nosso produto... ou a nossa linha de produtos, melhor dizendo... deveria ser utilizada apenas recreativamente. E assim tem sido, quase sempre. A imensa maioria das pessoas que ingere bebida alcoólica socialmente, não irá se tornar alcoólatra... talvez a possibilidade de um fumante contrair câncer de pulmão seja maior, mas também, grande parte morre de outras causas, não do cigarro.

O pai estendeu-lhe uma caixa de lenços de papel. Ela puxou alguns e começou a enxugar o rosto, mecanicamente.

- Não é interessante que nossos clientes morram usando o nosso produto. Nosso objetivo é que tenham vida longa e que o consumam com moderação, para que comprem durante muito tempo. Mas existem pessoas falhadas... sim, essa é a expressão: pessoas falhadas. Pessoas que vieram ao mundo com algum defeito de fabricação e que conseguiram sobreviver à infância e chegar à idade adulta. Parecem normais, mas tem alguma coisa quebrada por dentro, e que ninguém nota... não a princípio. E quando percebemos que há algo errado, pode já ser tarde demais.

Gemma fechou os olhos; inclinou a cabeça, o fluxo de lágrimas voltando a correr livremente pelo rosto inchado.

- O seu avô passou por isso há 50 anos, com aquela... Ruth? Ruth. Viciada em heroína. Aproximou-se ao perceber que ele poderia dar-lhe um suprimento ilimitado... e morreu de overdose. Seu avô ficou destroçado. Durante algum tempo, pensou em largar tudo e mudar de ramo. Dedicar-se a algo mais tradicional... lavagem de dinheiro, talvez. E no ano seguinte, outra cliente importante também morreu de overdose... a escritora, aquela do romance "Gelo". Se escrevesse hoje, com esse título, ninguém pensaria em heroína, mas em cristal. Mas seu avô já havia chegado à conclusão que o fez continuar no negócio... a culpa não é do nosso produto, é do que quer que esteja quebrado dentro das pessoas que o consomem. Se não morressem de overdose, morreriam de coma alcoólico, de cirrose, se suicidariam pulando nos trilhos do metrô.

E encarando a filha de modo paternal:

- Filha, a maioria das pessoas vive muito, e bem, sem precisar dos nossos produtos. E algumas... algumas poucas... morrerão por conta do seu próprio comportamento autodestrutivo. Não há nada que possamos fazer por essas pessoas, por maior que seja o nosso amor por elas. Eu sei o quanto você amava essa... Rita, não é?

- Rita - Gemma conseguiu articular.

- Mulheres com nome começado em R... - ponderou o pai. - Parece que há algum problema com elas.

E acrescentou, rapidamente:

- Não estou falando da sua orientação sexual, filha, a qual eu respeito. Não, nada a ver. O problema aqui é que Rita era uma dessas pessoas falhadas. Aproximou-se de você como a tal Ruth aproximou-se do seu avô. E ambas morreram da mesma forma: condenadas por seus próprios demônios interiores!

Ergueu-se da cadeira giratória, contornou a escrivaninha e pegando a filha pela mão, fez com que ela se erguesse. Pai e filha abraçaram-se, Gemma soluçando alto.

- Pai... pai... como vou viver sem ela?

- Você vai superar isso... você é forte... - repetia ele, acariciando os cabelos castanhos dela.

* * *

Sozinho novamente no escritório, pediu uma água Perrier à secretária. Em seguida, ligou para a mãe por uma linha telefônica criptografada.

- Gemma acabou de sair daqui. Está sofrendo muito.

E após um momento de silêncio:

- Será que fizemos a coisa certa?

Do outro lado da linha, a velha senhora engoliu um palavrão.

- Enrico, como acha que tirei a tal Ruth da vida do seu pai? Só não teríamos feito a coisa certa se alguém desconfiasse que a overdose foi forjada!

- Ninguém desconfiou, mãe. Meus informantes disseram que a polícia vai encerrar o caso... morte acidental.

Giulia fez um muxoxo de desdém.

- Somos mais espertos do que os Bobbies, Enrico... sempre fomos.

E elevando o tom da voz:

- Onde já se viu? Minha neta de caso com uma mulher! Isso nunca vai acontecer... não enquanto eu for viva! A culpa é sua, Enrico! Coração mole, igual ao seu pai!

Enrico apenas ouviu, em silêncio. E, de súbito, sentiu a dor do seu pai e da sua filha atingi-lo em cheio.

- [04-09-2017]