Pequena Matrix Diabólica.

Era madrugada da consulta, quando o quarto azul, de telhas quebradas, que dividia com os irmãos, tornou cenário do pesadelo. Um pesadelo que era quase real. Os irmãos em chamas, descamando a pele, Pedindo socorro... o barulho das sirenes... uma multidão de pessoas em frente ao barraquinho de palafita. A vizinha, Velha grinalda, ensanguentada, sobre as rotulas dos joelhos, parecia gritar, mas já sem voz... policiais correndo por todos os lados da cena do crime, perdidos entre si olhando para as crianças carbonizadas e lembrando dos filhos. O garoto tentou arregalar os olhos para voltar a realidade. Por mais que fosse dura, era bem mais maleável que a cena daquela tragédia.

Acordou com o olhar perdido na foto do pai, lembrando do sonho. Era dureza viver sem o Nivaldo. As idas no estádio de futebol, os churrascos de gato do domingo... O coração palpitava forte de saudade. Olhou ao redor e viu que todos os seus irmãos estavam roncando. Não havia proporção de realidade em nada do que foi visto há minutos atrás. Pareciam estar todos bem. Dona Marlene estava no outro quarto, dormindo o sono dos justos.

Após muita relutância em ceder ao sono por medo de reencontrar o que viu, Calebe dormiu como uma pedra. Parecia que tinha conseguido afogar o pesadelo no copo d’agua que tomou na cozinha. Ao levantar da cama, pela manhã, sentia-se mais estranho que habitual. Algo tomou o garoto durante a noite.

Aquilo parecia estar dentro dele. Causava repulsas, enjoo. Talvez tenha sido a refeição estragada da noite anterior, ou só o processo digestivo dela. Desde que fora capaz de prever a morte do pai em um trágico acidente automobilístico, não falou mais nada sobre as visões com os parentes. Guardar pra si era melhor, evitava os olhares de sarcasmo. Agora tudo era recolhido e aprisionado no mundo gigantesco da sua mente. Um garoto visionário. Sonhou com o acidente do pai, na semana da morte, duas vezes.

Logo cedo, quando o sol transpassava a janela, houve Três batidas na porta do quarto. Os três irmãos do garoto dormiam amontoados, uns sobre os outros, na cama que a mãe ganhou na rifa. O silencio intercalou mais duas batidas que sucederam. Dona Marlene, com bobs prontos no cabelo, gritou:

-velhinho, a comida já está na mesa. Não demore que eu tenho hora pra chegar no trabalho. A sua consulta é as oito. Eu ainda tenho que trazer você de volta para casa. - Marlene era uma excelente mãe, mas não suportava atraso. O garoto sabia bem da linha dura que era a mãe.

O garoto foi aluno destaque, e conseguiu pular uma serie. De lá pra cá, servia de troféu pra ser exibido no círculo das amigas. Era Símbolo da vitória de Marlene que criou os três filhos sozinha, e ainda sim bem. “Vocês são minha razão”, dizia todas as manhãs quando ia trabalhar, abria a porta do quarto para despedir das crianças amontoadas, uns sobre as outras, como ratos.

-já estou saindo mãe. Só falta escovar os dentes, respondeu Calebe.

Era um dia fora do comum, a segunda sexta feira do mês. Marlene tinha autorização para pegar mais tarde no serviço, pois levaria Calebe na psicóloga da clínica popular pra tentar decifrar o garoto que andava cada dia mais introspectivo em sua subjetividade.

O garoto não gostava muito da psicóloga. Achava a profissão dela invasiva. Fazia perguntas complicadas sobre ele. Calebe sentia-se espreitado a cada consulta, principalmente nos quinze minutos finais. A psicóloga sempre partia pro tudo ou nada disparando perguntas nos quinze finais. A sensação de trem desencarrilhado, fora de orbita, aumentava a cada consulta. A psicóloga Jeniffer, recém formada, parecia está cada vez mais perdida com o caso do menino. Um caso dessa natureza era tarefa árdua até para os mais experientes. Pra a psicóloga, com seis meses fora da academia, caminhando com as próprias pernas, as diligencias se tornaram ainda mais forte para decifrar o distúrbio comportamental do menino. A obstinação foi tanta que decidiu dormir no quarto separada do marido, para dedicar o silencio da noite estudando o caso do garoto. “Nossa, esse menino só Freud explica”. Sorria, vencida pelo cansaço de procurar explicações para as visões do paciente nas infindáveis páginas dos livros

Durante a condução o garoto brincava com a caneta que ele fazia as anotações no seu diário... a mãe, com voz furtiva, interrompeu a concentração do menino extasiado no brinquedo.

- Mamãe tem um assunto para tratar com você... já tem um tempo que eu tento conversar com você sobre luizin... sabe, meu filho, luizin me pediu que eu fosse morar com ele. Eu aceitei. Falei com a sua tia Mariclecia, ela me disse que cuida da casa e de vocês.

O garoto, que era considerado lunático, estava decidido em contar a mãe, hoje, sobre o que havia visto no pesadelo da noite anterior. Estava com medo que as consultas com a psicóloga aumentassem. Marlene já não tinha mais recurso para tratar o menino por tanto tempo. Já fazia três anos que ela tinha cruzado a sala da psicóloga, puxando o menino pelo braço. Mudou de psicóloga pelo preço. Mais um pouco de despesas e a fome bateria a porta pra jantar com eles. O garoto, que havia mergulhado sua atenção no brinquedo, Assentiu com a decisão da mãe de partir com luizin, e seguiu calado. O desembarque estava a duzentos metros, No ponto azul.

Subiu ao consultório caminhando vagarosamente, ao lado da mãe, enquanto as outras crianças corriam, frenéticas, fazendo vexame aos pais. Foram até a recepcionista e pegaram a ficha de número 5. O garoto sentou na terceira fileira, de cabeça baixa, com os músculos cada vez mais tensos desde a chegada ao consultório.

- Quatro... quatro... não irei chamar novamente, pessoal- A recepcionista parecia estar furiosa por não ter sido ouvida na multidão desatenta.

A mãe esperava ansiosamente a ficha cinco. Estava atrasada. Teria que tomar café às pressas no serviço, logo após entregar a “encomenda”. Calebe estava com a ficha na mão. Olhava carinhosamente para a ficha de número cinco. O que o cinco representava para Calebe, agora parecia estar ameaçado. Desde a notícia, o garoto não parava de lembrar de quantas vezes a mãe disse que ele e os irmãos era sua razão. “tenho quatro razões para viver,” dizia Marlene sorrindo com a roupinha amarela do serviço. O garoto estava impassível como sempre. Os quatro garotos, franzinos, ficariam com a tia. Mamãe já havia batido o martelo sobre a decisão.

Da ficha quatro não saia. Marlene ficava mais impaciente. Já pensava em faltar o serviço e se mandar com o luizin ainda hoje. Procurou alguém para descontar a sua raiva, mas Calebe estava tão calado que mal podia ser notado. Achou a recepcionista mexendo no whatts app...

- minha filha, pelo amor de Deus, eu tenho que ir embora. Já tem uma hora que estou aqui com o meu garoto. Eu já estou impaciente com a demora. – a mãe tentava convencer a recepcionista a todo custo, como um advogado que almeja o veredito favorável. Calebe tinha motivo forte para chorar, mas conteve-se. Mesmo a mãe estando viva, ele estava prestes a ser órfão com os irmãos.

-senhora, tenha calma. Só temos a psicóloga Jeniffer para atender. A demanda é muito grande aqui na clínica, serviço barato, atrai muita clientela.

- pois fale com ela pra remarcar. Nunca demorei tanto por aqui, minha filha. Não posso mais esperar. Ainda vou ter que passar mais trinta minutos no ponto esperando a condução...

Marlene desceu as escadas do mesmo jeito que tinha chegado, com pressa, puxando o garoto pelo braço.

A condução não demorou, mas em compensação o transito estava intenso. A mãe não esquecia um minuto sequer, a sexta feira perdida, sem consulta... estava furiosa e desabafava sem parar com o garoto, que estava mais cabisbaixo.

- menino, parece que o pão do pobre sempre cai com a manteiga virada para baixo. Quando eu cancelo a consulta pra não perder a hora do serviço, o transito fica desse jeito. Só sendo uma coisa mesmo...- Marlene mexia o tempo todo em um papel de anuncio que recebeu na rua da clínica. O papel parecia servir de terapia para o estresse. O transito estava caótico. Resmungava com o garoto enquanto o ônibus, que vinha torto pelo excesso de passageiros, peidava uma fumaça preta...

O garoto após pensar um bom tempo se contava ou não sobre o pesadelo para Marlene, decidiu contar. Temia que a mãe não desse credito.

- Marlene, eu tive um sonho muito esquisito essa noite. Era macabro...- o garoto parecia ter estagnado, lembrando do pesadelo. Conseguia lembrar de forma vaga, sucinta...- Á Casinha pegava fogo. Não a casinha em si, mas o quartinho da gente...

A mãe não deu muita importância. Já fazia um tempo que ela tinha se convencido que aquilo tudo era coisa da cabeça de Calebe. Agora tratava aquilo tudo como coincidência. Agora só pensava em encontrar luizin e partir para o estado do recife. “Daqui há alguns dias é vida nova,” pensava ela.

Chegando em casa, o garoto encontrou os irmãos brincando no pequeno quartinho azul... As garrafas pets eram os carrinhos. Apostavam corridas. Se eles desentendessem entre si, a garrafa servia de cassetete também. Calebe abraçou primeiro o irmão mais novo. Os outros dois estavam entretidos na disputa de corridas com a garrafa. Desde que o pai morreu, o quartinho azul, ficara inacabado. Uma caminha velha no meio, quatro garrafinhas pet ao lado, na cabeceira. Fios expostos. Calebe fechou a porta do quarto. A mente agora maquinava outra coisa. Uma ideia mirabolante pairou na cabeça do garoto. Resolveu Atear fogo na casa para ir embora junto com a mãe. Sem casa para eles ficar, ela levaria certamente os filhos. Calebe olhava para os fios. Basta tocar o fio vermelho, que já estava desencapado, no preto e “CABUM”... Vou pôr nos ares. Um show pirotécnico.

-irmãos, vamos brincar de bombeiros? - os meninos que não conhecia a brincadeira, interrogavam sem parar...

- mas como é isso veinho? Mamãe já avisou pra gente não brincar com fogo... você se lembra que eu me queimei. Se ela pegar você brincando com fogo, você está encrencado.

-não, não se preocupe, só preciso que vocês brinquem de carrinho lá fora, no terraço da dona grinalda. Pode deixar comigo que mamãe não vai saber

-ta bom então, veinho. Ai depois a gente volta pra apagar o fogo, ta certo, irmão? Vê se não faz muito grande – dizia o caçula. Os três irmãos saíram correndo em direção ao terraço da dona grinalda.

Só preciso tocar o vermelho no preto... como naquele filme de ação...

Pensou em quanto tempo conseguiria sair dali depois de tocar os fios. Calculava os passos para evacuar. Olhou pela janela e viu o disjuntor ressecado do sol. Era cinza com o aviso “PERIGO”. Antes de unir os fios, como uma trança de cabelo, decidiu desligar o disjuntor. “Segurança em primeiro lugar”, sussurrou Calebe. Desligou o disjuntor e uniu os fios. Tudo pronto. Só bastava esperar luizin para buscar a mãe. Como era de dia, Marlene não percebeu o plano diabólico do filho. Luizin riscou na esquina. Vinha a passos largos para levar pra longe dona Marlene. Ela só iria se fosse só. Luizin não gostava das crianças. Quando luizin entrou na casinha, Calebe se posicionou no disjuntor. O ódio do garoto por luizin fez ele esquecer da mãe. Agora estava a um click de fazer uma cena de cinema sem efeitos especiais. Transformar o namorado da mãe em churrasquinho. Chamou os irmãos para se posicionar de frente pra casinha para começar a brincadeira. Dava pra ouvir as gargalhadas triunfantes de luizin, certo que iria levar a mãe e deixar os filhos. Calebe puxou a tecla do disjuntor para acabar com o canalha. “CABUM”. O barulho foi ensurdecedor. A casa torrava em mil graus centigrados. Despedia da mãe em pensamentos. Agora ela foi pra perto do seu Nivaldo.

Os irmãos em choque com a dimensão da “brincadeira”, pediam socorro aos vizinhos. Pensavam na bronca da mãe, na pisa que levariam por aquela brincadeira de mal gosto depois que tudo terminasse e fossem convocados, de um a um, na cadeira do pensamento. Ouviu um único grito da mãe. Foi o canto da sereia para os filhos. Os três saíram em disparadas para dentro da casa em chamas.

Todos os vizinhos que sabiam da relação conturbada que envolvia Marlene, luizin e os quatro filhos, depuseram contra luizin. A certeza do crime era unanime. Os vizinhos pediam justiça agora. O laudo dos bombeiros quando encontrou a trança feita com os fios positivo e negativo corroborou ainda mais a ideia de incêndio criminoso. Luizin foi indiciado como autor, mas não chegou a responder judicialmente. Morreu três dias depois da tragédia com sessenta por cento do corpo queimado. Cinco restos mortais apareceram após o incêndio. O caso foi encerrado depois do obituário do réu. Calebe, órfão, seguiu para uma casa de adoção com uma foto do pai no bolsinho da blusa.

eraldo junior
Enviado por eraldo junior em 10/08/2017
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