A vítima

- Você está ouvindo a WMCA em 570 kHz, e eu sou Barry Gray, o seu anfitrião. São 23:50 h, vamos ficar juntos até à 1 h da manhã, e como disse no bloco anterior, iremos agora abordar o crime chocante do qual toda a cidade de Nova Iorque falou esta semana... o assassinato da jovem Catherine Genovese. A Dra. Jean Harley já está na linha?

Pelo vidro que separava o estúdio da sala de controle, viu o operador de áudio fazer sinal de positivo.

- Dra. Harley? Boa noite!

Uma voz vibrante soou no estúdio.

- Boa noite, Barry!

- A senhora é especializada em psicologia forense?

- Sim, eu sou uma psicóloga que presta serviços ao Departamento de Polícia de Nova Iorque.

- E o que poderia dizer ao nosso público ouvinte sobre as circunstâncias da morte de Catherine Genovese?

- Bem, Barry... foi um crime de extrema brutalidade. O assassino provavelmente sabia que a vítima fechava o bar de madrugada e a seguiu no caminho de casa, quando então a esfaqueou, embora não mortalmente. Ela conseguiu fugir e quase chegou à sua residência, mas o assassino conseguiu agarrá-la, esfaqueou-a novamente, roubou seu dinheiro, a violentou, e a deixou agonizando. Mas o pior é que Genovese poderia ter sido salva. Ela ficou caída na rua, se esvaindo em sangue e gritando por ajuda, foi vista por várias pessoas dos prédios residenciais ao redor, mas somente meia hora depois alguém teve a presença de espírito de ligar para a polícia. Os policiais chegaram rapidamente, mas já era tarde demais. Ela morreu a caminho do hospital.

- Como podemos analisar, não o comportamento do assassino, que obviamente é um animal, mas dos moradores que viram o acontecido, ouviram os gritos de socorro, e nada fizeram?

- Isso talvez seja o mais revoltante, Barry... essa passividade perante o mal, é um fenômeno que precisa ser melhor estudado pela psicologia. Há uma frase, atribuída à Einstein, que talvez resuma bem esta situação: "o mundo é um lugar perigoso, não por causa das pessoas que são más, mas por causa das pessoas que nada fazem quanto a isso".

- Precisamente o que vimos no caso da jovem Genovese. Pessoas testemunhando um assassinato e agindo como se nada daquilo lhes dissesse respeito. É de se perguntar que espécie de mundo estamos criando, se todos agirem desta forma.

- Será um mundo terrível de se viver, Barry. O oposto da parábola do Bom Samaritano.

- E é com esta reflexão que me despeço da Dra. Jean Harley, psicóloga à serviço do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Dra. Harley, suas palavras finais.

- Gostaria de agradecer a oportunidade de falar sobre o meu trabalho para a sua audiência, Barry. Boa noite!

- Boa noite, Dra. Harley!

Do outro lado do vidro, o operador de áudio fez sinal de que a chamada fora encerrada. Gray olhou para o relógio na parede, e continuou a falar:

- A seguir, faremos uma análise da situação política no Brasil, o grande país da América do Sul. O presidente do Brasil está sendo acusado de embarcar numa aventura comunista, mas há muita gente, mesmo aqui nos Estados Unidos, que sonha e vê comunistas até debaixo da cama. Vamos saber o que realmente quer esse João Goulart... no próximo bloco.

Ergueu um dedo e o operador começou a tocar o fundo musical que precedia o intervalo comercial.

- Fique conosco - prosseguiu o locutor. - Você está ouvindo a WMCA em 570 kHz. Meia-noite em Nova Iorque.

- [24-06-2017]