Morta

- Quem matou Lady Agatha está nesta sala - declarou Ellery Queen, para consternação geral. Os quatro suspeitos, sentados ao redor da grande mesa de mogno oval da biblioteca da Mansão Tremaine, entreolharam-se nervosamente. Qual, dentre eles, teria sido o perpetrador do nefando crime, e, o que era ainda mais importante saber, como o havia feito? Era de conhecimento geral, inclusive da polícia, que aguardava do lado de fora da sala, que motivos para dar cabo de Lady Agatha não faltavam. Mas o modo como a vítima havia sido morta era, no mínimo, desconcertante.

- Vamos recapitular - prosseguiu o detetive novaiorquino, mãos espalmadas sobre a mesa. - James, o mordomo, temia ser substituído pelo copeiro, Francis, que havia caído nas boas graças de Lady Agatha. Francis, por sua vez, estava chantageando a vítima por conta de algumas fotografias comprometedoras...

- Patife! - Exclamou James, encarando Francis com os punhos cerrados. O copeiro desviou o olhar, fitando seu próprio reflexo no tampo polido da mesa.

- A governanta, Ingrid, aparentemente não possuía razões para matar a vítima. Digo "aparentemente" porque, após diligências, descobri que a filha de Ingrid, Judith, que trabalhou nesta casa como arrumadeira e que demitiu-se alguns meses depois, estava grávida de Percival Tremaine, filho caçula de Lady Agatha. Percival não reconheceu a criança e Lady Agatha deu dinheiro para que Judith se mudasse para Londres. Confirma essa história, Ingrid?

Quatro pares de olhos cravaram-se na governanta, que havia ficado lívida. Mãos crispadas, ela respondeu:

- Eu... eu... sim, a história é verdadeira. Lady Agatha afastou minha filha e meu neto de mim! Mas isso não seria motivo para que eu a quisesse morta!

- Mas foi você a primeira pessoa que entrou na sala de estar e encontrou o corpo da minha mãe! - Atalhou furiosamente Percival Tremaine, dedo em riste.

- Silêncio, por favor! - Exclamou Ellery Queen, dando um tapa na mesa.

E quando todos se voltaram para ele:

- É fato que a governanta foi a primeira pessoa a entrar na sala onde a vítima foi encontrada. Também é fato que ela teria tido tempo de esganar Lady Agatha e depois gritar por socorro.

Fez uma pausa para analisar as expressões dos presentes. Os três homens pareciam agora relaxados, enquanto Ingrid estava na ponta da cadeira, mãos torcidas sobre a mesa.

- Mas o fato é que foi um homem quem cometeu o crime - concluiu.

E virando-se para a porta da biblioteca, disse em voz alta:

- Pode entrar, inspetor Highsmith.

Ouvindo o seu nome, o inspetor da Scotland Yard e dois policiais fardados entraram na biblioteca, posicionando-se junto à porta. Ellery Queen voltou-se então para o jovem Tremaine:

- O crime foi cometido por você, Percival Tremaine.

Pego de surpresa, o rapaz abriu os braços num gesto defensivo.

- Eu sequer estava em casa naquela noite! Saí cedo, no meu carro!

- Você efetivamente fez isso, - prosseguiu imperturbável o detetive - rodou uns 500 metros, e saiu da estrada, escondendo o automóvel por trás de uma sebe. O problema é que um guarda-caça passou pouco depois por ali e reconheceu o carro. O homem tomou o cuidado de ligar para a polícia, para ver se constava algum registro de roubo do veículo, e a hora ficou registrada. Coincide com o horário presumível da morte de Lady Agatha.

- Mesmo se o que diz for verdade... - disse Percival, tentando aparentar calma - não tem como comprovar que voltei para a mansão e matei minha mãe. Além disso, diferentemente dos criados, eu não possuía motivos para desejar a sua morte!

- Isso não procede - atalhou gelidamente o detetive. - Depois do seu affair com a filha da governanta, Lady Agatha deu ordens para que o testamento fosse alterado. Ela chegou a ligar para o tabelião, pedindo que viesse à mansão... justamente na véspera do dia em que foi assassinada! Você sabia que iria ser deserdado, Percival Tremaine!

O rapaz engoliu em seco. Na parede da sala, um relógio de pêndulo bateu um quarto para às sete da noite.

- Ao tomar conhecimento disso, você engendrou o seu plano maquiavélico: sabendo que sua mãe tinha o mau hábito de tomar uma taça de vinho e cochilar na banheira, fingiu sair para uma noitada e voltou pouco depois à pé, entrando muito provavelmente pelo porão. Daí, aguardou que Lady Agatha fosse para o banho, entrou no banheiro usando uma cópia da chave, e matou-a por afogamento.

E perante as expressões de surpresa de três dos presentes:

- Sim, prezados, a vítima morreu por afogamento, isso já foi determinado pela perícia. As marcas de estrangulamento foram feitas post mortem, para dar a impressão de que ela havia sido morta na sala de estar trancada por dentro, onde foi encontrada.

Vendo que o jovem Tremaine nada dizia, continuou:

- Cometido o crime, o assassino teve o cuidado de enxugar a vítima, vestí-la, e levá-la para a sala de estar no andar de baixo, onde foi encontrada; pelo esforço envolvido nestas tarefas, apenas um homem, do porte físico de Percival Tremaine, teria sido capaz de fazer isso. Ele deixou a chave da sala no lado de dentro e trancou-a por fora usando uma cópia, do conjunto de chaves usados pelos criados.

- E porque eu me daria a todo esse trabalho? - Indagou Tremaine com expressão ultrajada.

- Para culpar a governanta, que seria a primeira pessoa a entrar na sala e possuía motivos conhecidos para querer a vítima morta. E, depois de cometer o crime, aí sim, você retornou à floresta, pegou o seu automóvel e foi para a sua noitada, só retornando na manhã seguinte, quando o corpo já havia sido encontrado. Parece que acabei de desmontar o seu álibi perfeito, Percival Tremaine.

Tremendo de raiva, o rapaz pôs-se de pé, como se fosse pular sobre o detetive. Os policiais avançaram em sua direção, cassetetes em punho.

- Maldito Ellery Queen! - Vociferou.

- Percival Tremaine, você está preso pelo crime de assassinato - disse o inspetor Highsmith, tirando as algemas do bolso e aproximando-se do acusado, cercado pelos policiais. - Tem o direito de permanecer calado, e tudo o que disser poderá ser usado contra você na corte.

Tremaine nada respondeu, e assim foi escoltado para fora da sala. Vendo-se só com os três criados que o fitavam abismados, Ellery Queen disfarçou um bocejo, e antebraços apoiados na mesa, comentou em tom casual:

- Alguém poderia me servir um lanchinho? Estou morrendo de fome!

[01-04-2017]