Não Foi Culpa Minha?

Eu já estava naquela empresa a muitos anos quando aquele sujeito começou a trabalhar lá...

Lembro que não gostei dele desde o primeiro minuto que o vi. Aquele sorriso cínico, aquele cabelo lambido e o terno impecável nunca me convenceram...

Mas o cara era filho do dono da empresa, pior que isto, era o filho caçula mimado do dono da empresa, então, muito a contra gosto, Eu e os outros funcionários tivemos que engolir seco quando o dono nos disse que ele seria o novo gerente.

Apesar de ser o caçula ele não era jovem, o pai dele, apesar da idade avançada, tinha bem mais disposição que ele para tocar os negócios. Estava na cara que ali ele era uma mera figura decorativa, encostado...

Soube que depois de vários divórcios e outros tantos negócios falidos, A mãe dele convenceu o marido que o seu anjinho merecia uma chance..

Logo no começo ele mostrou quem era...

Não tinha postura de gerente, de líder.. .

Se reunia nas rodinhas com os outros funcionários, contando piadas maliciosas e fazendo comentários obscenos sobre as mulheres da empresa. Dava nojo...

Assediava descaradamente as funcionárias, em especial as mais novas.

As que reclamavam, eram convencidas financeiramente pelo pai dele a não prestarem queixa.

Comigo ele não mexia, não era louco o suficiente para isso. Na primeira brincadeira idiota que ele tentou fazer comigo já tratei de colocá-lo no lugar. Todo mundo achou que ele ia me mandar embora, talvez até tenha tentado e o pai dele não deixou, sei lá. Só sei que depois disso ele mal me dizia bom dia.

Para mim era melhor, não gostava dele mesmo, o que importava para mim era fazer o meu trabalho com a mesma excelência que sempre fiz ao longo dos anos.

Me irritava profundamente com as coisas que eu via ele fazer com as outras meninas, Mas tentava ignorar, afinal não era da minha conta.

Até que um dia aquela menina entrou na empresa, ela era muito jovem , olhos claros, cabelos escuros até o ombro. Ela me lembrava tanto a minha irmã mais nova...

Minha irmãzinha, raspinha de tacho de minha mãe que eu ajudei a criar, que foi embora tão cedo...

A semelhança entre elas era tanta que minha mãe levou um susto quando a viu, depois chorou por 3 dias seguidos...

Fui incumbida de treinar a novata, o que acabou nos aproximando.

Cada dia ela parecia mais minha irmã, minha filha, então foi crescendo em mim um desejo de proteção, como se os céus me dessem uma segunda chance, já que não havia conseguido proteger a minha irmã.

Aquele gerente imundo, olhava para a menina com olhar de predador...

Era questão de tempo até que ele fizesse algo...

Meu instinto materno aflorou com força total, principalmente quando ela disse que havia perdido os pais muito cedo, primeiro a mãe, um ano depois o pai.

Contei a ela sobre todas as coisas que sabia sobre aquele imbecil, pedi a ela que tomasse cuidado. Ela apenas sorria e dizia brincando "pode deixar mamãe".

Nós trabalhávamos uma ao lado da outra, nossas mesas, assim como a de todos os funcionários, eram separadas por divisórias brancas tipo "Meia parede" deste modo, bastava se levantar para ver qualquer um dos colegas.

Ela fazia todos os dias a mesma coisa, me olhava por cima da divisória, cortava um pedaço da maçã com uma faquinha de Serra cor de rosa que ela trazia e me oferecia. Eu nunca aceitei, não gosto de maçã, mas mesmo assim ela oferecia todos os dias e depois ria por não lembrar que eu não gostava.

No mezanino ficava a sala da gerência, de onde ele observava a todos, ou melhor, a todas, em especial a menina nova.

Quando ele soube que ela era minha amiga, minha protegida, parece que seu interesse por ela aumentou e junto com isso o meu ódio por ele.

Lembrei da minha irmã...

Seu telefonema desesperado pedindo socorro, o barulho da porta sendo arrombada...

Minha saída desenfreada até em casa...

A polícia no local me impedindo de entrar...

Minha mãe desmaiada sendo socorrida na ambulância...

O saco preto...

O vazio...

O sangue...

O silêncio...

Quando voltei das minhas tortuosas lembranças vi o predador à espreita olhando minha filha, minha irmã, minha amiga, minha colega de trabalho, de forma maliciosa...

Eu precisava fazer alguma coisa, antes que algo pior acontecesse. Tinha que pensar....

Eu contei a ela sobre minhas preocupações, Ela disse ser bobagem, que ele nunca ia passar a barreira das cantadas idiotas na hora do cafezinho...

Eu não acreditava nisso...

Subestimar o inimigo era um erro que eu não cometeria novamente...

Um dia ela me disse, "preciso deste emprego, por favor não faça nada, não quero que se prejudique também".

Não me convenceu, meninas jovens e ingênuas como ela, que precisavam do emprego, eram as vítimas preferidas daquele infeliz.

Comecei a planejar o que eu faria, pensei em veneno no café, cortar os freios do carro...

Sim, na minha cabeça a única solução seria mata-lo...

Não falei para ninguém os meus planos, nem para Ela, assim seria mais fácil levar isto adiante sem ninguém me atrapalhar.

Enquanto isso não acontecia, procurava ao máximo deixá-la longe daquele monstro.

Ela se divertia e dizia que eu era uma mãezona mesmo, que a mãe dela nunca tinha sido assim.

Ela sabia a história da minha irmã...e entendia.

Naquele dia porém, eu não fui trabalhar pela manhã, minha mãe não havia passado bem durante a noite e então eu resolvi leva-lá ao médico.

Fiquei preocupada... Comigo longe, O terreno estava livre para o predador agir...

E para ajudar na minha paranoia, não conseguia falar com ninguém da empresa.

Depois da certeza que minha mãe ficaria bem, a deixei em casa e corri para o trabalho.

Quando cheguei comecei a reviver meu pior pesadelo...

Faixas amarelas cercavam toda a empresa, policiais não deixavam ninguém passar...

Ouvi alguém falando em assassinato....

Eu gelei...fiquei tonta...

De repente me veio a imagem da minha irmã...

Neste momento eu vi novamente o saco preto, os coletes do IML...

Quando eles passaram perto de mim, pude perceber através de uma pequena abertura do saco, a ponta do cabo de uma faça cor de rosa...

Meu coração quase parou...

Corri, empurrei todo mundo e abri o saco preto, tinha certeza que veria minha irmã mais nova morta...

Antes de um policial me tirar dali, pude ver quem estava no saco...

O gerente, ainda com os olhos abertos, pálido, sujo de sangue e com a pequena faca rosa enfiada na garganta....

Respirei aliviada para logo depois entrar em pânico novamente!

Onde está a dona da faca rosa ?

Teria morrido também?

Mas então eu a vi, ainda em choque, tremendo, suja de sangue, Sentada na viatura da polícia .

Tentei me aproximar mas não deixaram...

Quando ela me viu começou a gritar dizendo "Por favor me ajude, não foi culpa minha..."

Parecia que eu estava ouvindo minha irmã no Telefone, seu desespero...

Procurei alguém conhecido que pudesse me dar alguma explicação...

Encontrei uma das minhas colegas de trabalho, ela me contou...

Já era perto das 10 horas quando a menina apareceu por cima da divisória e ofereceu um pedaço de maçã, quando a colega aceitou, Ela cortou um pedaço com sua faca rosa e então perguntou a minha colega se sabia o que tinha acontecido comigo, porque eu não tinha vindo...

A colega disse que não sabia...

Foi quando as duas olharam para o mezanino e viram o gerente olhando fixamente para baixo.

Visivelmente incomodada, a menina então falou para a colega que iria comer a maçã no refeitório...

Assim que ela saiu, O gerente desceu e foi até o refeitório também.

Antes que a minha colega pudesse pensar qualquer coisa ela ouviu os gritos....

Primeiro o dela, logo depois o dele...

Quando todos correram para o refeitório a cena que viram foi assustadora...

Muito sangue...

A menina encolhida em um canto chorando, o gerente caído com a faca rosa no pescoço, dava seu último suspiro...

Ela só falava, "não foi culpa minha, ele tentou me agarrar, fiquei com medo, me defendi, não foi culpa minha, não foi culpa minha..."

Alguém chamou a polícia...

Fiquei olhando assustada, não parecia possível que ela tenha feito aquilo...

Mas então me lembrei de quem era a Vítima...

Era possível sim...

Ele era nojento, eu mesma tinha planejado matá-lo, qualquer uma das meninas que ele assediou poderia ter feito aquilo...

Eu sabia que ela seria massacrada na delegacia...

O pai da "vítima" era rico e influente.

Mas por incrível que pareça, todos os colegas se uniram em favor da menina e o pai da vítima, pouco se movimentou contra, já a mãe...

Esta fez de tudo para manter a menina presa...

Contratou um grande advogado para acompanhar o processo.

Fizemos uma vaquinha, Todos os funcionários colaboram, mesmo assim não conseguimos o suficiente para contratar um bom advogado para livrar a menina.

Um dia, uma das meninas que foi assediada pelo falecido gerente me procurou, me entregou uma grande quantia em dinheiro que disse ter recebido para não prestar queixa...

Nunca teve coragem de denunciar e nem de gastar o dinheiro...

Ela contou que alguns dias antes o gerente a procurou em sua casa, tentou invadir, disse que ela tinha sido comprada e agora pertencia a ele, mais outras coisas horríveis...

Contou que ela começou a gritar e um vizinho meio doido saiu armado para ver o que estava acontecendo e então o cretino fugiu...

Ela saiu de casa, ficou na casa de uma amiga, trancada em um quarto, com medo, sem coragem de por o pé para fora até o dia que ouviu que ele havia morrido...

Ela me entregou o dinheiro e disse que não via melhor maneira de gasta-lo,

Me disse que se a quantia não fosse suficiente para tirar a menina da cadeia,

Ela venderia seu carro, sua casa, porque para ela a liberdade que ela sentia naquele momento não tinha preço...

Mas o dinheiro foi suficiente para contratar o melhor escritório de advocacia criminal, em pouco tempo ela estava fora...

Mais algum tempo e o processo seria arquivado pois foi comprovado a legítima defesa...

A mãe do falecido gerente esperneou até a última instância...alegava que o crime foi premeditado, porque a arma do crime era da menina, Que ela deveria ter planejado isto a muito tempo, que seu filhinho caiu numa armadilha...

Tudo em vão...

Todos sabiam e testemunharam sobre quem era o gerente e quem era a menina...

Sobre o comportamento de um e de outro e principalmente sobre a faca...

Todos sabiam que ela levava a faca porque comia uma maçã toda a manhã.

Todos viam ela cortando a fruta e oferecendo aos colegas...

Quando o processo foi definitivamente resolvido,

Ela me disse que ia embora, minha mãe ficou muito triste, eu fiquei triste...

Ela tinha ficado na minha casa durante este tempo, Era como ter minha irmã de volta...

Apesar disso entendi suas razões...

Aquela cidade, as lembranças...

Quando fui leva-la ao aeroporto, ela me abraçou e me disse que eu era a única pessoa que merecia conhece-la de verdade...

Não entendi muito bem o que ela quis dizer com aquilo, até que voltei para casa...

Recebi uma encomenda mandada por ela na porta de casa, uma caixa...

O entregador disse que uma moça havia aparecido na empresa de entregas a alguns dias e determinado que a encomenda fosse mantida no freezer e que fosse entregue somente a mim, em mãos, naquele dia e naquela hora...

Eu entrei em casa, sentei no sofá e fiquei olhando para a caixa, pensando o que poderia ter dentro...

Quando abri fiquei espantada....

Dentro havia alguns recortes de jornais, fotos do falecido gerente e várias e várias maçãs congeladas, todas faltando apenas um pedaço....

Por cima de tudo um pequeno bilhete, reconheci a letra dela....

Nele dizia: SOU ALÉRGICA A MAÇÃS...