Reflexo

O bar ferve. Acanhado em uma mesa ao canto, Rodney pensa no esquema tático para o time que sonha treinar, se conseguir mais dois. Já nem espera habilidade, se souber tocar a bola, já serve. As regras vai ensinando. É um sonho bom, que o mantém respirando. Engole metade do copo de uma vez. Pinga barata, desce ruim, é o que pode. Não deveria, vai estragar sua condição física, correr menos. Ri da própria estupidez. O que resta depois do fracasso, da tarde perdida? Antes perder jogando. Mas por ausência do time? Não esperava, não quis acreditar. Mas era óbvio. Como a falta de público. Quem iria tão longe àquele lamaçal assistir a um jogo que nem sabem as regras? A cabeça começa a entorpecer lembrando a cara de alívio de Angelo tirando a camisa de juiz e correndo pra casa. Se não queria, por que aceitou? Não preciso de esmola. Não é por mim, é pela verdadeira arte, pelo futebol. Um dia vão perceber o que estão perdendo. Eles vão saber. Apruma-se na cadeira. Lento, apanha um pedaço de papel amassado no bolso do casaco velho, um lápis quebrado vem junto. Alisa o papel na mesa. Aperta forte o lápis no papel riscando o esquema. Quatro-três-três ou quatro-quatro-dois?

Na alegria do bar lotado, ninguém o percebe. Um mais bêbado, de passagem ao banheiro, esbarra em Rodney que esconde os rabiscos, envergonhado. Bate em seu ombro:

- Dá-lhe poeta! Depois quero ler, hein! Rodney se fecha, abaixa a cabeça, espera passar.

Do balcão, o português faz um sinal negativo. Alerta entre dentes:

- Deixa esse aí, não é poeta não.

- Não escreve?

- Pior - abaixa a voz - futebolista.

O bêbado estaca. Afasta-se. Solene, faz o sinal da cruz. Volta a seu caminho, cambaleando e retomando a alegria da noite de festa.

Rodney termina o copo, enche outro. A cabeça gira. Quer que o mundo acabe, quer acabar antes.

À sua volta o bar lotado de entusiastas. É noite de quarta, final histórica na tevê ligada a todo volume. A decisão, transmitida ao vivo, prepara o público para o anúncio do resultado logo mais à noite. Com apoio das grandes mídias e patrocínio de grandes empresas anunciantes, o evento atrai a atenção de milhões de pessoas em todo o mundo.

O proprietário, português de Tras dos Montes, cobrado de imparcialidade, defende-se. O bar é território neutro, são todos bem vindos, mas atrás do balcão cabe uma só devoção. E beija a camisa da sorte que usa sempre em dias de festa. Atrás dele um enorme cartaz não deixa dúvidas. É uma casa lusitana, com certeza. A figura do grande herói português ocupa toda a parede. Soberano, soberbo em sua timidez, com seu inevitável casaco longo, bigodes e chapéu, Fernando Pessoa, o herói dos heterônimos. O eterno ídolo dos apreciadores da poesia, dos entusiastas dos versos, da arte que reúne multidões em todo planeta. A literatura, a febre mundial que aliena multidões em torno de um livro, em rodas de leituras, em gigantescos saraus que lotam os estádios a cada fim de semana.

- Vai dar Saramago!

- Já foi, português! Não vão repetir!

- Nunca se sabe! - grita do balcão - Mas se não for, ao menos um lusófano!

Na tevê, ligada no volume máximo, o locutor anuncia:

“E nessa noite, reúnem-se em todo o planeta os amantes da Grande Arte para mais uma vez acompanhar essa que é uma festa de confraternização, de união dos povos para a consagração dos heróis da maior alegria de todos. A paixão que une multidões. É hoje, senhoras e senhores, a noite de apresentação da final do Premio Nobel de Literatura. Direto da Suécia, onde tudo é decidido. Há uma grande expectativa, uma expectativa imeeeensa em cada canto do pais, em cada lar, nas esquinas, onde há um aparelho de televisão ligado nessa emoção. Nos rádios, na internet, não se fala em outra coisa. Em todos os telejornais, na mídia falada e escrita. É a literatura, o amor e a dedicação à palavra, a paixão nacional e mundial, o grande fenômeno que une tantos corações, que encanta e mobiliza multidões. Pra frente escritores, o time seleto que leva a esperança de muitos em cada palavra, em cada frase, em cada conto e romance construído pela imaginação desses gigantes, os nossos heróis, tão queridos e amados por suas torcidas, pelo seu povo, por seus milhões de leitores em todo o planeta!”

O bar responde à ufanista retórica do locutor. As mesas lotadas de entusiastas e fanáticos literários. Quem será o campeão desse ano? Alguns confiam em Karl Ove Knausgard, o surpreendente dinamarquês aclamado como o novo Proust. Os adeptos da literatura engajada clamam por um escritor que defenda as minorias. Lembram de Svetlana Alexievich. Debatem a ética na estética, argumentam a responsabilidade social do escritor. Alguém defende um latino americano, outro um universalista. No meio da discussão uma proposta faz rir a todos.

- Depois de Bob Dylan, por que não Renato Russo?

Em cada mesa, um debate fervoroso. Mais do que a final do Nobel, discutem os meandros das tramas, cultuam os estilos, comparam as habilidades, relembram as obras, citam os trechos. A profundidade de Clarice, a imagética de Garcia Marques, a justeza de João Cabral. A polêmica é típica, inevitável em um povo com tanta paixão e envolvimento com as letras. Uma nação amamentada e criada em íntimo contato com a literatura. A poesia é parte de seu dia a dia, explica seus mitos, resume seus sonhos. Compõe e renova seu vocabulário. A língua é a grande deusa nacional. Em torno dela se unem, consagram suas crenças, se entendem como um povo, uma nação. Que garota ou garota não sonha em ser um grande escritor? Alcançar a fama, a glória e os altíssimos salários que recebem os bons escritores? Que pai não se orgulha de ver seu filho tecendo versos desde cedo, compondo tramas, traçando contos, erguendo romances e enchendo os domingos de fábulas?

O clima de saudável polêmica é interrompido quando alguém, buscando a união, evoca as unanimidades, os mais consagrados. Viva Drummond! Salve Dostoievski! Alguns respondem: Bandeira, Bandeira! E gritos de apoio, aplausos, assobios e bandeiras agitadas enchem a noite de alegria.

Rodney levanta estonteado. Fugindo do pesadelo que é sua vida nesse mundo, sente que vai vomitar. Apóia-se nas paredes, o caminho é longo, um passo segue o outro. Quase alcança o vaso mas já não tem pernas. Cambaleia e cai sobre a pia. Com a cara colada ao espelho encara sua derrota. Respira forte embaçando a imagem. Pelo espelho tenta ler o reflexo invertido do poema na parede atrás de si. Cai antes de conseguir. Ao sentir o frio do chão molhado em sua nuca, o cheiro de seu sangue misturado ao da urina, espera que seja o fim.

Enquanto a luz lhe foge devagar algo nele ainda revolta-se a tempo de apenas desejar que o mundo fosse invertido.