Fotografia num lance.
revisado

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Um estalo, um estampido, um som seco. Não houve eco ou abalo, nada, apenas um ruído provocado pelo deslocamento do ar que circundava árvores, bancos, gramíneas, flores e águas represadas por fortes contenções.
A forte chuva do dia anterior não fizera nenhum estrago na paisagem, mas havia muito umidade. A luz do meio dia não era forte o suficiente para que a torre da igreja pudesse ser vista.
A trilha de pedra portuguesa que cortava a cercania de leste a oeste, era uma mistura de mosaico com remendos, fazendo para alguns uma avenida, para outros uma trilha de pouco mais de setenta centímetros de largura, para a maioria um empecilho, motivo de preocupações, entrementes, para uma minoria, uma sedução, calafrios, saudades, medos, uma passagem para o fim ou para a permanência de alguns mistérios.
Não havia um pássaro, nenhum! De nenhuma espécie naquela hora, naquele minuto, naquele instante. Como pode? Se há tantos ninhos e bocas sedentas de fome, tantos corpos a clamar pelo calor daquelas que os sustentam.
O silêncio revelou todas as suas entranhas. Foi rasgado, dilacerado, ou cortado pelo fio de uma navalha: sem respingos, sem manchas, no silêncio ecoou um grito que aportou na sua integridade inocente.
“Não aja como um meninin!” Uma lembrança lhe avançou atropelando alguns pensamentos um tanto mórbidos!
Olhou para as nuvens que formavam imagens bizarras, divertidas, fúteis e familiares. Por que lhe veio esse pensamento de uma época tão longínqua?
Quantas vezes teve pensamentos sem uma origem, alguns fatos do passado às vezes lhe assaltavam a mente ou atitudes em momentos tão desconexos como nessa realidade momentânea!
Por que lembrou agora quando foi à escola pela primeira vez? Sentia algo ambíguo pela professora, a imagem em sua mente agora estava turva como uma bolha de gás. Lembrou quando ela falava de pertinho, mas a imagem dela estava tão longe e se misturava na turva bolha de gás, tudo emaranhado e desconexos.
Estava rindo dos pensamentos, ou ria daquele tempo que havia retrocedido? Riu, riu e ficou a admirar a confusão da realidade. Por que pensou nisso agora sem querer novamente?
O sol não agredia seus olhos, essa estrela brilhante parecia uma lanterna cujas pilhas estavam já gastas pelo uso, mas esse planeta incandescente não funciona a pilha, talvez por uma fornalha de carvão! Meditava observando a fragilidade dos raios luminosos que revelava todos os detalhes daquele instante. Onde estão as nuvens?  Não há sol agora?
Uhai! Quem é essa menininha que vem lá de longe quicando como se estivesse a saltar poças d'água? Olha sô! Coberta num vestidinho de chita abafado de bichinhos. Girafinhas, ursinhos e formiguinhas verdes e marrons. Opa! Tem um rasgadinho ali, logo ali na barra; deve ser de tanto foliar, ora uma poça ora um pedaço de pau. A barra esfiapada do vestido desce até os calcanhares.
Sua primeira namorada era tão engraçada, na mente pode até não ser, mas no coração, a primeira é sempre a mais bonita. Nunca lhe beijou, nunca lhe tocou. Viveu muitas eternidades ao seu lado.
Sabia onde ela morava, mas nunca foi lá. Um dia ela embaraçou na barra do vestido e deitou abaixo, correu para ampará-la, mas seu pai anteviu. O agastamento do pai era sinistro e intimidante. Sentimentos e desejos inocentes foram pulverizados totalmente para os dois naquele instante.
Ela lhe falou que morreria se não o visse mais. Ah! Por que não preferimos preservar os mistérios? Manter as distâncias nos mantêm na eternidade, nos pensamentos infinitos que nos perseguem como um raio de luz na escuridão! Mas não tinha a menor pretensão de pensar nela agora. Que absurdo!
Uma leve brisa que chegava do norte, começou a trapacear suas vistas mais e mais, que despautério,  em pleno meio dia! Acreditava ser noite, noite sem estrelas.
Um frio subiu pelas suas pernas que descansavam em ângulos diferentes uma da outra. Já não conseguia pensar, suas lembranças lhe foram todas rapinadas, mas, se agora, neste momento! Não era senhor de suas próprias lembranças, quem teve o direito de lhe furta-las?
 Os movimentos das pernas e dos braços eram desconexos e sem sentidos. Quase todo seu corpo adormeceu, menos a mente.
Num lance de fotografia, com os olhos já exaustos e quase todo retraídos viu uma imagem, nem imaginava quem poderia ser, mas a voz doce, um olhar piedoso e olhos úmidos lhe trouxeram paz, serenidade. Não havia mais perturbação, confusão e medo, a certeza de estar bem assenhoreou-se da razão, o coração latejava devagar, devagar e mais devagar... Não identificou nem recordou dessa estampa que se mantinha suspensa sobre si, ou seria um espelho?
Aquela imagem sombreada que gravitava em torno dele não se mexia. Um rastro de vozes ecoava em sentido anti-horário, nesse turbilhão de palavras e frases, decifrou uma oração completa que fazia sentido agora:
-- Um projétil penetrou na caixa craniana dele, implodiu o diencéfalo e está alojada no bulbo raquídeo!
O silêncio celerado reina agora na algazarra de uma vida.