Fim de Um Sonho.
 
Quando o telefone tocou, um coisa ruim lhe percorreu o corpo, junto com essa coisa, um calafrio, a pele dos braços e da nuca se arrepiaram, uma sudorese nas mãos desproporcional e dava se a impressão que os joelhos iriam falhar em manter o corpo ereto.

O telefone nunca tocou tanto e com tanta intensidade como naquele momento, mesmo estando afastado do aparelho que estava instalado na parede entre a cozinha e a sala de jantar, a intensidade do volume lhe assustava.

Marco Aurélio voltou se para o aparelho, as ondas acústicas reverberavam insistentemente em sua alma, e o martelo a martelar o tímpano furiosamente, trim., trim., trim., aquelas marteladas de cada trim lhe apossava uma certeza. Por dever, deveria atender o telefone, mas o querer lhe negava insistentemente.

Marco Aurélio pensou, mas a voz lhe traiu!

-- É coisa ruim! Tenho certeza, tenho uma premonição, mas pelo dever, tenho que atender!

Apenas uma toalha de banho lhe cobria o corpo da cintura até os joelhos, estendeu o braço direito e levou até o aparelho que vibrava incessantemente.

-- Alô, ...

De imediato ninguém respondeu, um suspense se somava à premonição. O vazio junto com o silêncio fez Marco Aurélio obliterar em qualquer intensão.

-- Alô, por favor, preciso falar com Marco Aurélio, ele está?

O calafrio e a sudorese continuavam, mas agora havia uma certa segurança, apesar que, a premonição ainda estava gravitando em torno de si, mesmo identificando quem estava do outro lado da linha.
-- Vespasiano rapaz! O que você precisa para me ligar agora? Afinal são quase dez horas da noite!

Do outro lado da cidade, aquele que fez a ligação esforçava ao máximo para falar. Pelo tom da voz e a cadência da mesma era de dor e de dar dó! O homem estava de dar pena.

-- Marco Aurélio! Uma pausa longa, por favor! Preciso te encontrar hoje, senão me mato ou faço coisa pior. Pelo amor de Deus, me encontre!

Em pensamento, aquele que atendeu a ligação afirmava categoricamente, é premonição, tenho certeza como dois mais dois são quatro. Alguém te telefona naquela hora, e o indivíduo está disposto a tirar a própria vida, só poderia ser coisa ruim.

-- Vespasiano meu amigo, onde você pensa em me encontrar uma hora dessa, afinal, já passa das onze horas e hoje é quarta-feira, lembra né!

-- Vamos encontrar no Torvelinhos Blue Bar. Você sabe né, lá não tem horas para fechar e é um bar bem tranquilo. Já estou indo. Olha! Não demora tá! Pelo amor de Deus! Suplicou Vespasiano.

Marco Aurélio meditou. Às vezes, fazemos coisas para os amigos que depois arrependemos. Entrementes, às vezes a gente não decide fazer, somos levados por uma força estranha que nos impõe a andar para o local para o qual não queremos, somos conduzidos pelas próprias pernas que agem por vontade própria! São nessas horas que razão e emoção não tem nada a ver com o homem.

Torvelinhos Blue Bar é uma pérola de bar, é difícil acreditar, mas este bar consegue unir água e óleo, ou seja, toca todo tipo de músicas, sertaneja, bossa nova, MPB, pagode e até música clássica!

Os frequentadores deste são muito educados e discretos, todavia, há certas expressões de alguns frequentadores que são... hilárias. Um exemplo, uma música começa a tocar, ele ou ela, abaixa só um pouquinho a cabeça, serra os olhos, vira o rosto em direção a uma mesa alienatória, levanta lentamente e suavemente o lábio superior, mantendo os dentes serrilhados, e bem baixinho, quase num sussurro, percebe se que a pessoa diz, “noooosa! Demais essa música”.

Quando Marco Aurélio chegou ao local combinado, o pânico em pessoa já se encontrava alojado em uma mesa. Pálido, olhos estatelados há querer saltar das orbitas oculares, mãos nervosas, ora na perna, ora na mesa, ora na cabeça, salivava um tanto desmedido.
Marco Aurélio sentou junto à mesa do amigo com a seguinte certeza, se a inevitabilidade da tragédia é fato, junte-se a ela e tente ser feliz.

Vespasiano e Marco Aurélio são amigos há anos e durante muitos anos trabalharam juntos, mas as Moiras gregas decidiram separa-los. Eles jogavam bola juntos, bebiam juntos e até saiam juntos, eram mais que irmãos, diriam os outros, eles eram carne e unha, entrementes, agora trabalhavam em empresas diferentes.

-- Amigo, muito obrigado por vir, peço apenas a sua atenção e deixe de gracinhas, deixe os trejeitos dos frequentadores do bar de lado ok, quando eu estiver narrando minha tragédia, seja mais que meu confidente, mais  amigo que você sempre foi. É imprescindível jogar tudo que há de desgraças e decepções dentro de mim para fora, ou isto há de me fazer um zumbi! Balbuciou com os lábios trêmulos e sem cor.

Marco Aurélio concordou com um movimento de cabeça, mas aproveitou uma pausa longa que seu amigo lhe deu antes de começar e pediu ao garçom, uma garrafa de cachaça Chora Rita e uma porção de toucinho e salame cortado em cubos e molho de pimenta. “Nessas horas pimenta serve como refresco”!

Vespasiano desferiu um olhar inseguro e assustado num ponto vazio do bar, sua narrativa para o calvário começou assim:

-- Ontem fiz vinte anos que estou na firma, todavia, quero lhe dizer que, há algo que nunca lhe disse; quando entrei nessa firma, além dos colegas que fiz lá e você os conhece, há também a Lavínia, lembra né. Pois é, depois de algum tempo, comecei a me aproximar dela.
Não sei se ela me deu alguma abertura ou eu adentrei para além de uma amizade de colegas de trabalho, o fato é que comecei a me envolver com essa fulana.

O tempo foi passando, cada dia me interessava mais por ela, me continha, mas já começava a pensar nela sem lhe buscar na memória, Lavínia sempre estava em minha consciência.

Casada, com três filhos, uma menina e dois guris, o marido trabalhava por empreita, mas devido a problemas de saúde, aposentou por motivo de força maior.

Na empresa corria a boca miúda, que Lavínia sabia administrar seus ganhos além da imaginação do possível. Ia para o serviço de ônibus, passou a ir de moto, mas em pouco tempo passou a ir de carro usado, depois um semi-usado e finalmente um zero quilometro.

Juro, eu não queria, tenho Deus como testemunha, mas um belo dia, despretensiosamente, ela quem tocou em minha mão tão suave que não resisti, trocamos os olhares de casais apaixonados. Isso aconteceu numa festa de fim de ano na empresa.

Por incrível que pareça, ela me ofereceu carona no final da festa e aceitei, mas não seguimos para casa, mas para local a princípio ignorado. A partir desse momento, não tinha mais Deus como testemunha.

Uma mulher esguia, morena clara, olhos iguais a jabuticaba bem madura, nariz fino, mas com as ventas bem dilatadas, testa longa e muito brilhante devido ao uso constante de cosméticos. Sempre muito cheirosa, nunca repetia o mesmo perfume na semana, para cada dia da semana um aroma diferente.

Quanto mais nós saiamos, mas íntimos íamos ficando, ela falava das dificuldades e eu muito solicito, a ajudava, eu já estava apaixonado, cego, ou seja, já tinha prostrado de quatro para danada.

Certo dia, ela me pediu para lhe ajudar com uma determinada quantia de dinheiro, logo isto tornou uma rotina, saímos e ela precisava de alguma coisa, eu lhe ajudava de bate pronto.

Depois de um ano, comecei a me preparar para que nós ficássemos juntos, ela não disse nem que sim, nem que não, apenas me ouviu atentamente, segurando minha mão direita em seu regaço.

Ajudei Lavínia a trocar de carro, um carro na casa dos oitenta mil, ajudei, reformar uma casa dela de aluguel, perfumes, roupas, não lhe negava nada.

Confesso que perdi alguns amigos nessa nova fase de minha vida, Diocleciano de tanto me insinuar que ela poderia ser isso mais aquilo me fez com que eu o repulsasse, duro de lembrar, éramos amigos inseparáveis, de pesca, de viagens e de bebedeiras, de uma hora para outra, lá se foi outro grande amigo. Septímio Severo apelidou-a de prumo, quando fiquei sabendo quase tirei satisfações devido essa piada de mal gosto, lembro que salivei como um cão.

Corria entre os colegas que, devido Lavínia não ter o traseiro bem formado, podia bater um prumo da nuca até os calcanhares dela que não haveria nenhum desnível. Junto com essa piada, vinha uma fofoca que ela havia feito uma cirurgia plástica nos seios. Lavínia havia retirado trezentos mililitros. Ela acha feio os seios muito fartos, achava que os pequenos são mais bonitos e fáceis de cuidar.

Marco Aurélio percebeu durante a pausa da narrativa que, já havia bebido quase toda a cachaça, uma porção de toucinho e de salame já eram! Meu Deus! Onde vai parar essa trágica narrativa e nossa bebedeira? Está história está parecendo a caixa de Pandora

Pode parecer absurdo, mas já eram três horas da manhã e o Torvelinhos Bar continuava com todos as mesas ocupadas e as pessoas sussurrando com seus trejeitos quando as músicas começavam e suas cabecinhas inclinadas e olhos serrados.

-- Vespasiano, preciso ir ao banheiro, dá uma pausa e já volto. A ida ao banheiro foi cheia de transtornos, fui chutando pés de cadeiras, esbarrando na cabeça uns aqui e outros acolá, por duas vezes gangorreei como um barco em grandes vagalhões.

Quando Marco Aurélio retornou à mesa, havia mais uma porção de salame e toucinho. Vespasiano retomou para a trilha do gólgota:

-- Foi numa quarta-feira, pequei todas minhas economias e dei entrada num apartamento do programa, minha casa minha vida, mobiliei o AP todinho. Dois meses depois, numa sexta-feira levei Lavínia para lhe mostrar o apartamento, tomamos umas latinhas de Bhrama, comemos um frango a passarinho e uma saladinha de tomate, pepino, cenoura e azeitonas verdes.

Levei a para o quarto, sentamos na cama e com toda a felicidade do mundo em meus olhos, lhe fiz um pedido que me faria feliz por toda a vida:

-- Lavínia, vamos morar juntos! Já se passaram três anos que estamos vivendo nossa relação às escondidas?

Antes que Vespasiano me dissesse a resposta dela, Marco Aurélio não comeu, mas sim, engoliu um naco de salame com um toucinho com um gole de meio copo da cachaça Chora Rita numa talagada só.
Vespasiano deu sequência à tormenta que o agonizava:

Sentada na cama, com as costas apoiada na cabeceira da cama, uma outra pessoa se apresentou naquele momento, nunca imaginei que isso seria possível! Lembra da menina do filme Exorcista? Pois é, a transformação foi naquele nível, só não vomitou. Lavínia se levantou violentamente, olhos fixos e vibrantes que me rechaçava. O rosto tornou se seco e meio contorcido, de punhos cerrados, gritou com salivas voando por todos os lados, empunhou o punho em riste para mim:

-- Vespasiano! Você ficou maluco? Fraco da cabeça? Seu idiota! Eu jamais vou me separar do meu marido e dos meus filhos. Você acha que eu sou uma qualquer, uma mulher de randevu?  Uma rampera! Olha aqui seu palhaço, mesmo que me tornasse viúva, eu jamais me casaria com você! Seu traste! Tenho um nome a zelar perante meus filhos e minha família, meu marido é um homem sério e de moral ilibada, Vespasiano! Sua proposta é uma desgraça para qualquer mulher de bem.

Vespasiano deu uma pausa, precisava se recuperar, tomou meio copo de Chora Rita, mastigou um pedação de toucinho, depois limpou a boca com as costas da mão, rosnou fino, amuado e deu sequência à sua pachorra:

-- Lavínia saiu mais rápida do apartamento que eu poderia imaginar. Em pé junto a cômoda, permaneci por um longo período. Não consegui pensar, a mente ficou vazia, embotada, esvaiu tudo, apenas o vazio ocupava os espaços na minha mente. Passado algum tempo, fui até a cozinha, me sentei junto à mesa, comi todos os pepinos, tomei todas as cervejas e acordei no dia seguinte debaixo de todas as cervejas e os pepinos do dia anterior. Não sei se gastei mais tempo tomando banho ou limpando a cozinha.

Uma semana depois do ocorrido, comecei a repassar toda a história que tive com aquela que rasgou em pedacinhos os meus melhores sonhos de minha vida. Me atentei para um fato, ela nunca podia sair comigo nas segundas-feiras e nas quartas-feiras!

Então resolvi averiguar, afinal, três anos não são três dias. Pequei um carro emprestado com um colega e fiquei as espreitas do caminho que Lavínia fazia quando saia do serviço.

Com muito cuidado e descrição iniciei uma perseguição. Quatro quarteirões antes de Lavínia chegar em sua casa, ela parou o carro e um homem entrou no carro e seguiu direto para um motel.

Fiquei de butuca por várias horas debaixo de uma árvore, uma Sete Copas muito grande. Assim que eles saíram, dei início à minha perseguição. Poucas quadras depois o carro parou, o sujeito desceu do carro e o carro seguiu. Resolvi ficar e ver onde o homem iria.

O homem andou pouco e parou em um bar de esquina, não me lembro o nome do bar, resolvi estacionar o carro e ir até o buteco. Estava cheio de cachaceiros e umas mulheres já bem risonhas sob o efeito da pinga que elas tomavam de graça.

O cara pegou uma cerveja litrão, era uma Cristal, sentou numa mesa que estava do lado de fora do bar, para meu espanto, quando fui pedir uma pinga, o sujeito que tinha saído do carro de Lavínia me chamou pelo nome e disse:

-- Deixe a pinga para depois, venha tomar uma cerveja comigo.

Então olhei para o dono do buteco, ele me olhou como eu o olhei, dentro dos olhos, compreendi no seu olhar, estáva tudo bem, o sujeito é gente boa, e em seguida me perguntou se eu queria um limão. Lembrei na hora do um meu amigo Septímio Severo, um entre aqueles que perdi, ele gostava a beça tomar cerveja com limão.

Segui até a mesa do estranho com o copo vazio na mão, puxei uma cadeira e olhei bem para aquela figura que já sabia meu nome e me tratou como se fossemos amigos de longa data.

O cara era alto, muito forte, cabelos encaracolados e amarelos, estava com a camisa desabotoada, peito cabeludo, os cabelos do peito e dos braços eram amarelos, ele parecia um celta ou um viking, falou calmamente comigo enquanto enchia meu copo de cerveja:

-- Meu nome é Constantino, e te conheço há três anos.

A voz de Constantino impactava! Após brindarmos, perguntei-lhe de onde me conhecia, se nunca o vi antes?

-- Lavínia sempre me contou de seus casos, entre nós nunca houve segredos, pois nunca tive ou terei, e ela sabe bem disso, a pretensão de morarmos juntos; Ela me conta sobre todos os seus casos. Respondeu Constantino.

-- Então eu estava tendo um romance com uma mulher que eu acreditava que é casada e saia só comigo! Mas vejo que eu tinha um sócio! Vespasiano falou mais pra si mesmo.

-- Não! Você tinha mais que um sócio nesse negócio, se é assim que quer encarar! Tem mais um! Um baita dum negão que trabalha na prefeitura! O cara se chama Diocleciano e é boa praça, risonho, paciente, entrementes ao mesmo tempo é sistemático na cama, só aceita fazer papai mamãe. Ele é metido a garanhão, não pega nem resfriado, mas é um cara ótimo pra conversar.

Não tive a menor dúvida! O sujeito, esse Constantino, além de ser um belo de um cafetão, provavelmente, era um sujeito que se divertia com as desgraças dos outros, fazia humor negro sempre que a vida lhe dava oportunidades, não era risonho, mas o corpo expressava o prazer que sentia ao narrar os fatos que Lavínia, a malévola, lhe confidenciava sobre os outros. Sentia um verdadeiro algoz.

-- Não me leve a mal Constantino, mas não pretendo ser seu colega nem amigo, espero que você me entenda, afinal eu estava vivendo um sonho, que agora se tornou um pesadelo. Pra ser sincero, está cerveja está quente e amargando a cada minuto que fico aqui ouvindo suas histórias. Acreditava que era só minha e daquela desavergonhada o que vivemos!

Vespasiano se despediu dando um tchauzinho tímido no ar para Constantino, enquanto esse alisava o peito cabeludo, com um sorriso contido no canto da boca tomando uma Cristal geladinha.

-- São quatro e meia da manhã Vespasiano! Acho melhor irmos embora né? Pediu Marco Aurélio.

-- Me espere só eu ir até o mictório, e depois vamos.

Conforme Vespasiano ia se distanciando rumo ao banheiro, Marco Aurélio sentia que Vespasiano ia se descompondo, se desfragmentando, a vontade era de juntar os pedaços do amigo que ia compondo uma trilha de pedaços de gente até a toalete.

Antes do amigo retornar do banheiro, Marco Aurélio pagou a conta e se pôs em pé a espera do amigo. Assim que os dois saíram do bar, se despediram com um longo abraço. Vespasiano vertendo lágrimas lhe fez a última confidência, todavia, olhando para o bico do sapato:

-- É o fim de um sonho. E pensar que quase coloquei o apartamento no nome dela, minha mãe que não deixou, aos gritos ela me dizia, deixa de ser besta retardado! Mas que rapaz burro!

Marco Aurélio se despediu com uma pergunta:

-- Vespasiano meu amigo! Você tem ideia de quantas mulheres solteiras tem nessa cidade e estão doidas para se casar!