O teste do padre

A pequena cidade de Joselina não contava com grandes atrações. Como todo pequeno povoado, em seu centro urbano constava uma praça. Ao redor desta, instituições de praxe: delegacia, prefeitura, agência dos correios, Banco do Brasil e a Igreja. Por um tempo, ali também funcionou um cinema, porém, não foi de grande sucesso. Alguns anos mais tarde vim a saber que passavam os filmes com muitos anos de atraso. Mas como eu era criança, não dava atenção a isso. Naquela época, achava que os filmes que passavam na sessão da tarde eram lançamentos recentes e que eram todos produzidos no Brasil. Não sabia o que era dublagem, acreditava realmente que os atores falavam português. Mas isto não se trata de cinema, e sim da vida de interior. Mais precisamente da cidade supracitada, onde a (única) maior diferenciação dos outros povoados era possuir um grande seminário. Não que fosse um grande diferencial, pois muitas outras cidades possuíam algo parecido. Mas, novamente, para minha fértil mente infantil, era algo que nos diferenciava dos outros. Esperava, inocentemente, que um daqueles astros que apareciam em minha televisão de seletor de canais, nos visitasse para conhecer o seminário, ou acompanhar a histórica primeira missa de um padre recém formado. Mas, novamente, isto não se trata de cinema, mas sim de uma pequena história sem importância.

Tratava-se do evento da cidade, algo esperado por todos os habitantes. Mais um domingo diferenciado, destacando-se na folhinha de calendário; aguardado por muitos desdenhosos sanguinários, ansiosos por humilhação humana: o momento de fraqueza do recém formado. Tratava-se de um rito, seguido a risca por muitas gerações canônicas. Não me atrevo a adentrar nos conflitos internos da instituição; deixo isto para outros interessados. Atrevo-me, sim, somente a abordar aquilo que vivi em que pude tirar minhas próprias conclusões.

Uma vez por ano havia a apresentação de mais um padre formado no seminário da cidade. Caso passasse nessa prova ígnea, seria transferido para outra paróquia. Nosso artigo de exportação. Não sei bem como começou esta tradição. Dizem que foi por acaso e que rendeu boatos e fofocas por toda a região. Dizem que até gerou uma notícia no jornal da capital. Alguns dizem que o caso rodou o mundo. Antigamente eu acreditaria, mas hoje, dificilmente.

O caso foi o seguinte: era década de 60, pelo que diz a maioria, mas a data correta se perde no boca a boca. Um novo padre seria apresentado à comunidade na missa de domingo. No fatídico dia, assumiu a nave da igreja e comandou o ritual com perfeição. Porém, quando recitava a Oratio Universalis, fez uma pequena pausa para um gole de água e neste intervalo, o jovem resolveu dar uma mirada em seu público (muitos dizem que foi para cometer o pecado do orgulho). Jó tinha razão em afirmar que é prudente aquele que não compactua com seus olhos. Ao erguer a cabeça ele a viu. Para melhor descrever o ocorrido utilizarei as palavras do próprio padre, que relatou anos depois:

"Uma jovem de rara beleza e vestida com uma magnificência real. Foi como se escamas me caíssem das pupilas. Tive a mesma sensação de um cego que recuperasse subitamente a visão. O público, tão resplandecente havia pouco, apagou-se de repente, as velas empalideceram sobre os candelabros em ouro como as estrelas pela manhã, e em toda igreja se fez uma completa escuridão. A encantadora criatura destacava-se contra aquele fundo de sombras como uma revelação angelical; parecia estar iluminada por ela mesma e proporcionar luz em vez de recebê-la.

Abaixei as pálpebras, decidido a não mais erguê-las para me subtrair à influência dos objetos externos; pois a distração me invadia cada vez mais e eu mal sabia o que fazia.

Um minuto depois reabri os olhos, pois, através de meus cílios, eu a via faiscante com as cores do prisma e numa penumbra purpúrea como quando se olha para o sol.

Ah! Como ela era bela - Os maiores pintores, quando perseguindo nos céus a beleza ideal, trouxeram para a terra o divino retrato da Madona, sequer se aproximaram daquela fabulosa realidade."

Não pretendo estender-me mais, já que foram utilizadas mais 3 páginas para descrevê-la. O fato é que, finda a missa, o novo padre sumiu-se com a bendita colocada na última fileira. Foi alvoroço total. Blasfêmia, diziam uns, apesar de nem saberem o real sentido da palavra.

Não sei de qual mente insana saiu a ideia de perpetuar tal acontecimento, mas nos anos seguintes, logo que um padre novo se apresentava para a primeira missa, tal teste era realizado, organizado pelo padre e em conluio com algumas beatas da população local. Os seminaristas não sabiam de tal prática.

Uma voluptuosa senhora - trazida de outras cercanias, mediante pagamento - sentava-se na última fileira, mas de modo que quem estivesse na nave da igreja, a visse assim que mirasse o público. Não vestia-se forma vulgar, tampouco chamativa, mas com pequenos toques de mistério. E, sim, tinha que ser morena, algo raro naquela cidade de colonização germânica. Dela, se esperava um ato simples: uma olhada circunstancial, uma cruzada de pernas, um movimento da mão nos cabelos.

Todos aguardavam ansiosos pela primeira olhada do novo padre. A partir de então, todos observariam o seu comportamento. Se fosse predestinado a ser um servo de Deus, conseguiria manter o controle e terminar a missa da mesma forma serena que começou. Caso tivesse algum desvio de conduta, ali se apresentaria e então, estaria fadado a ser desacreditado por seus pares. Muitos anos se passaram e a tradição tornou-se famosa. Tanto ao ponto de um seminarista a conhecer e tentar utilizar um artifício para trapacear. Pouco se sabe sobre o treinamento que as mulheres recebiam para conseguir atrair tanto a atenção do padre novato. Dizem alguns que bastava ser mulher, pois nós, homens somos seres fracos.

Certa vez, um novo padre teve uma "grande" ideia: utilizar óculos de grau diferente do seu, para não conseguir enxergar a tal dama. Porém, esqueceu-se de que teria de ler a bíblia durante a missa. Todos acharam muito estranho que o padre colocava os óculos para olhar para o público e tirava para ler. Em uma destas passagens, o padre se confundiu e tirou os óculos para mirar o público. Ledo engano. Viu a moça e perdeu-se em devaneios.

Dizem que tal teste começou a ser aplicado em vários lugares mundo afora. Procure, a próxima vez que for a uma missa, uma morena sedutora no último banco.

Sitrucian M
Enviado por Sitrucian M em 14/04/2017
Reeditado em 22/02/2019
Código do texto: T5970607
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